Esclareço, inicialmente, que o conceito de conspiração neste texto inspira-se no livro clássico de Marilyn Ferguson, A Conspiração Aquariana, da década de oitenta, referindo-se a um modelo orgânico e holístico de organização cooperativa e sistêmica, uma rede de consciência como um instrumento de transformação individual, social e ambiental. Trata-se de um movimento trans institucional e auto organizador, flexível e sinergético, como um poderoso instrumento evolutivo de interação e de reconstrução paradigmática. Conspirar implica em respirar com – consigo, com o outro, com os outros, com a natureza e a totalidade, aqui e agora, um processo implícito na base de uma ecologia do Encontro, alquimia da transmutação.

Em 1987 tive o privilégio de coordenar, em Brasília, o I Congresso Holístico Internacional – I CHI, com Pierre Weil como seu Presidente de Honra, sustentado em dois significativos documentos. Por um lado, a Declaração de Veneza, que tinha sido assinada em 1986, apenas um ano antes, derivada de um Colóquio da UNESCO, com a participação de representantes da ciência, notadamente o físico teórico Basarab Nicolescu, com notáveis da filosofia, da arte e da tradição sapiencial, modelar texto-convocação que sustentava a premente necessidade de um diálogo entre os diversos estilos epistemológicos, visando a aliança imprescindível entre a ciência e a consciência. Por outro lado, a Carta Magna da Universidade Holística Internacional, neste mesmo ano redigida em Paris por Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e Monique-Thoenig, com as diretrizes básicas de uma universidade fundamentada na abordagem transdisciplinar holística.

O I CHI proclamou no final do documento dele originado, a Carta de Brasília, que ‘Diante dos riscos da fragmentação e desvinculação que conduz ao caos da violência e da confusão, ameaçando as pessoas e as nações, apontamos para a opção holística. O século XXI será holístico, ou não será’. Com uma qualidade iniciática, este memorável evento impulsionou a criação da Universidade Internacional da Paz, mantida pela Fundação Cidade da Paz, por uma iniciativa visionária do então governador do Distrito Federal, José Aparecido de Oliveira, que dele participou. Trinta e três anos depois cá estamos, em outro evento de natureza iniciática, o Encontro Imaginal, coordenado por Marco André Schwarzstein numa parceria entre a UNIPAZ e o DMP – Deep Memory Process, que agora se inicia novamente no Planalto Central do sonho profético de Dom Bosco, desta vez com a virtude do virtual, que transcende todas as fronteiras.

Gilbert Durand afirmava ter sido significativo que, em 1979, alguns célebres físicos da quântica se encontraram no Colóquio de Córdoba, focado no tema central da ciência e o imaginal, com pesquisadores da psicologia profunda, estudiosos das religiões comparadas, poetas e humanistas, em homenagem a Henry Corbin, apenas um ano após a sua passagem da existência. Foi precisamente em Córdoba, capital da Espanha islâmica, que houve a cisão, no século XII, entre a gnose oriental e o que acabaria por se tornar, sob a égide de Aristóteles, a ciência materialista e tecnicista ocidental.

De acordo com Henry Corbin, esta ruptura deu-se por ocasião do funeral do comentador aristotélico Averróis – que triunfou contra os platônicos do Islã Avicena, Sohravardî e Ibn Arabi -, mentor do que se tornaria o racionalismo empírico ocidental, como um desdobramento do paradigma aristotélico tomista, que prevaleceu durante oito séculos na história ocidental. Nesta ocasião, Ibn Arabi da religião do Amor, conhecido como filho de Platão, autor do Tratado da Unidade, grande pioneiro da mística neoplatônica aliada à tradição sufi, da filosofia profética e teosofia oriental na base da concepção do mundus imaginalis, diante do avanço de um movimento dualista e literalista no âmago do espírito da época do Ocidente, retirou-se em marcha definitiva e também vitoriosa para o Oriente de todas as luzes. Por sua clareza e consistência as ideias de Ibn Arabi se difundiram além das fronteiras do mundo mulçumano, embora tenham caído no esquecimento após algumas décadas da sua morte. A altaneira visão mística e profética deste andaluz da metafísica da Luz foi resgatada, no século passado, pelo gênio erudito impecável de Henry Corbin, que considerava a hegemonia de Averróis perante Ibn Arabi uma catástrofe metafísica que conduziria o Ocidente à alienação do agnosticismo niilista, da secularização, da coletivização e do historicismo.

Considero esses simpósios, o de Córdoba e o de Veneza, uma sincronicidade na história da consciência que simboliza uma conexão sutil entre o I CHI de 1987 e o que agora se inicia, Encontro Imaginal – o Resgate da Alma do Mundo.

Platão e Aristóteles não são apenas filósofos; simbolizam dois mitos constituintes da inteligência humana, são também destinos. Como indica Corbin, já nascemos platônicos, assim como agnósticos ou ateus, pelo mistério de uma eleição preexistencial. Heráclito de Éfeso afirmava que caráter é destino. Inspirando-se neste arauta grego do perene processo – e em Plotino -, James Hillman, na sua teoria do fruto do carvalho, sustenta que a existência humana é conformada a partir de uma imagem original inata, que a estrutura com força de destino. Neste sentido, a pessoa que busca psicoterapia anseia pela própria biografia, a grafia da Vida que impulsiona seus passos, a revelação epifânica do próprio semblante. Naturalmente, para lograr a maturidade de uma completude ainda que sempre inacabada, uma pessoa de natureza platônica necessita resgatar a dimensão aristotélica do seu ser, como o peripatético precisa encontrar e desenvolver o Platão do seu inconsciente.

Na célebre pintura de Rafael, Platão é retratado descalço – como Moisés em solo sagrado, diante da sarça ardente do deserto -, apontando para o alto, para o universo invisível e imaginal das Ideias arquetípicas. Enquanto Aristóteles, com sandálias, tem sua mão espalmada para baixo, como seu livro que segura na outra mão, indicando o mundo visível da literalidade de uma racionalidade pragmática. Além das polaridades, com a sabedoria do Tao que integra e transcende os opostos, Lao-Tsé afirmava que o alto descansa no profundo – assim como o visível é engendrado e encontra seu sentido no invisível.

Avicena ou Averróis, eis a questão! Segundo Corbin, com o triunfo ocidental de Averróis sobre Avicena e, consequentemente, sobre Sohravardî e Ibn Arabi que lhe sucederam, ocorreu uma cisão epistemológica no Ocidente entre a função cognitiva e a revelação, entre o racionalismo e a gnose, entre o saber e o ser, entre a história e o símbolo, com a prevalência da lógica formal binária aristotélica. A vitória da concepção peripatética de Averróis na dialética da consciência histórica ocidental impregnou o paradigma da escolástica medieval, tendo se seguido o inevitável desdobramento do averroismo em tomismo e, posteriormente, em cartesianismo, resultando na naturalização do ser humano por meio de uma razão fria instrumental e um dualismo redutor, que negou a fundamental ponte anímica e noético-imaginativa entre o corpo e o espírito, bem como a função transpessoal da Presença. Um desolador naufrágio da contemplação, da imagética e da alquimia, que Ibn Arabi afirmava ser irmã da profecia. Ocorreu, enfim, a dessacralização e o consequente desencantamento do mundo. Gilbert Durand denunciou os três estados de repressão ocidental da imagem, com sua função terapêutica noética e espiritual: a redução positivista da imagem a signo, sua subtração metafísica a conceito e, finalmente, sua degeneração teológica a historicismo.

O esquecimento e a repressão gradativa da angelologia aviceniana, sohravardiana e de Ibn Arabi, que propunha uma mediação angélica direta da imaginação transcendente e criativa entre o ser humano e o inacessível mysterium tremendum do Absoluto, teve uma funesta consequência. Esta ponte mediadora foi substituída pela hierarquia eclesiástica de uma Igreja militante que, em alguns aspectos – e apesar do seu nobre buquê de santidade -, acabou se corrompendo e se degradando no oposto dos ensinamentos crísticos originais, sobretudo com as cruzadas sangrentas seguidas de uma satânica Inquisição. Um movimento de enantiodromia que, de Cristo, conduziu ao Anticristo.

No Século XX Henry Corbin resgata, a partir de Platão e Plotino, as luzes orientais teosóficas de Avicena, de Sohravardî, de Ibn Arabi, de Rûzbehan de Shiraz, até Molla Sadra e Sa’îd Qommî, entre outros, em convergência com a gnose ocidental de Swedenborg, Jacob Böhme, Paracelso e a psicologia complexa de Jung, desvelando uma fenomenologia da consciência angélica, o mundus imaginalis, alam al-mithal, espaço noético de hierofanias e angelofanias, que oculta o aparente e manifesta o oculto, como mediação entre a terra e o céu, para que o corpo torne-se espiritual e a terra celeste. Seu grande feito foi estabelecer uma aliança imaginal de conexão com um Cosmo simbólico do universo das epifanias, das aparições, das profecias, das revelações e da arte xamânica do sagrado, como uma convocação gnóstica de reencantamento do mundo pelo resgate da sua alma profunda, Anima Mundi, uma fenomenologia da Presença, uma convocação para o Ser.

Henry Corbin afirma ter sido iniciado no próprio universo imaginal, através do mestre invisível Sohravardî, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, quando se refugiou na Instituto Francês de Arqueologia de Istambul. Foi no clima numinoso deste retiro iniciático, transcorrido durante a mais dilacerante tragédia internacional da história conhecida, entre1939 e 1945, no qual aprendeu a virtude do silêncio, que Corbin mergulhou definitivamente na gnose islâmica. Com o privilégio de ter sido orientado pela transmissão e presença sutil do paradigmático Sohravardî, mestre da contemplação visionária e da metamorfose do ser, o Imã das luzes que, no Século XII, fundou a base ontológica do universo imaginal, transgredindo as ortodoxias de sua época, tendo por isto sido martirizado como herético, com 36 anos, por ordem do poderoso e famoso sultão Saladino. Corbin precisa que ele mesmo tinha exatamente esta idade quando se iniciou na aventura noética de desvelamento do mundus imaginalis, espaço alquímico onde o corpo se espiritualiza e o espírito se corporifica, que sutiliza a matéria e materializa a sutileza.

A profetologia islâmica denomina ao guia sufi invisível de al-Khadir ou al-Khidr, o mestre oculto que inspirou e orientou o legislador Moisés e o profeta Elias. Por meio de estados ampliados de consciência, da imaginação ativa e do universo do sonho lúcido, o verdejante guia iniciático al-Khadir, que fala direto ao coração, espaço simbólico da imaginação e da revelação, inicia o discípulo à gnose da teosofia oriental no entremundo visionário do imaginal. Neste sentido, Sohravardî exerceu para Corbin uma mestria semelhante à de Filêmon, com relação a C. G. Jung. Este impecável avatar aquariano atuava em transcomunicação com o mestre da psicologia complexa, por meio do órgão noético da imaginação ativa, que penetra o suprassensível e transmuta dados sensoriais em símbolos. Um exercício primordial da linhagem ancestral da filosofia profética, que Jung redescobriu por via da alquimia, sobretudo no exercício da epopeia imaginal do Livro Vermelho, obra seminal incontornável para a compreensão da sua obra.

No cosmo imaginal desvelado por Corbin afirma-se que o literal é uma metáfora do imaginal, que contém o seu sentido secreto. A história literal é uma metáfora de uma hierohistória ou metahistória imaginal. A geografia exterior visível de nossos mapas é uma metáfora de uma geografia interior imaginal, lugar do Não Onde, topografia visionária, Imago Terrae, onde habitam os xamãs, videntes e profetas. Como afirmava Novalis, o poeta do romantismo alemão, segundo Graf-Dürckheim, o visível é um invisível elevado ao estado de mistério.

Nesta perspectiva, quando olhamos para um semblante humano o que vemos é uma metáfora de algo que transcende a aparência ilusória, como a transparência de um ícone, imagem simbólica visível que aponta para uma realidade invisível. Eis uma terapia sutil para a enfermidade da idolatria fundamentalista, fixação alienante e literalista que sequestra o olhar e subtrai a inteligência pela estagnação superficial, que aprisiona a pessoa ao que ela vê e conhece, ao túmulo de suas certezas. Aqui estamos diante do desafio e da ousadia de transmutar, como sustentava Corbin, a opacidade de ídolos em transparência de ícones.

Na visão corbiniana o imaginal é um campo de percepção simbólica, cujo acesso se dá por meio do órgão mediador da imaginação ativa criadora, um exercício intuitivo da percepção visionária noética, que atua como um Espelho capaz de refletir o universo arquetípico, matriz de onde jorram os símbolos.

A nossa liberdade consiste não no que nos acontece e, sim, no que fazemos com aquilo que nos sucede. Eis a crucial tarefa da hermenêutica, que nos eleva de objetos levados pelos ventos das circunstâncias a sujeitos dotados da virtude de uma autoria capaz de, por meio da linha do sentido, tecer os caóticos e supostamente arbitrários fatos existenciais em uma gestalt compreensiva, em um récit, um recital, uma narrativa simbólica, que transmuta mera biologia em biografia, auto invenção, poiesis existencial. Em outras palavras, trata-se de transformar a miscelânia de supostos acasos de acontecimentos externos em configuração de experiências significativas da alma e da consciência.

Além de todos os fundamentalismos e fanatismos infelizmente dominantes, a hermenêutica consiste na arte e ciência de interpretar as letras e os acontecimentos, os sintomas e as crises, nossos passos e tombos, de uma maneira polissêmica, aberta e plural, para de tudo extrair um ramalhete de possíveis sentidos, múltiplos e complementares, visando uma reorientação para o norte de uma destinação, consciente e livre. Com a importância do que Jung denominava de fator eficaz, pois o único sofrimento insuportável é aquele para o qual não temos nenhum sentido para dar, pelo fracasso da interpretação.

O exemplo impactante da pandemia que caracteriza 2020 – este ano emblemático que não teve início e nem findará, talvez com o valor simbólico de um marco redefinidor na história da família humana -, precisa ser interpretado na multiplicidade de seus níveis de significados, além dos estéreis determinismos, como se fora um texto sagrado a ser lido, desvelado e compreendido. Por meio da hermenêutica, que Corbin postulava como um exercício permanente, os sintomas, crises e tragédias transmutam-se em ocasiões de aprendizado, de revelação e de individuação.

A imperativa hermenêutica que se encontra no âmago do mundus imaginalis é denominada de ta’wil, o conotativo muito além do denotativo, capaz de penetrar nos sentidos mais sutis e secretos das escrituras e dos fenômenos aparentes ou literais, um ato poético libertador destinado a recuperar a palavra perdida do mundo, da alma e da consciência. Trata-se de retornar à origem, à fonte, ou seja, ao arquétipo. Corbin abraça uma fenomenologia que consiste em rasgar o véu para desvelar a essência oculta, em convergência com uma hermenêutica espiritual desveladora do anjo como arquétipo, a origem e o fim, fonte e alvo da alma do peregrino em seu anelo pela luz.

A gnose islâmica insiste no tema do exílio ocidental, uma condição de amnésia, um trágico esquecimento do lar da essência de onde tombamos e para onde todas as autênticas trilhas iniciáticas nos reconduzem. Em outras palavras, a luz tomba no pó para que o pó se ilumine; o espírito tomba na matéria para que a matéria se espiritualize. A Queda significa amnésia, esquecimento, involução, enquanto a ascensão simboliza recordação, evolução – jornada heroica, anamnese essencial no sentido platônico, que tem início com a consciência da prisão do exílio, acompanhada de uma nostalgia profunda, do pressentimento de um lar perdido, de uma pátria esquecida, em plena ressonância com a parábola evangélica do Filho Pródigo. Trata-se de uma iniciação simbólica implícita no processo de individuação, como uma peregrinação, um retorno à origem, que solicita o acompanhamento de um guia, pois o caminho é labiríntico e pleno de ciladas e de obstáculos, trilhas luminosas e sombrias da imaginação, que transparece como anjo e como demônio.

Henry Corbin, postulando uma ontologia integral, indica o paradoxo do monoteísmo das denominadas religiões do Livro, que implica na percepção simultânea da unidade na pluralidade, e do plural no singular. Neste enfoque, o autêntico monoteísmo implica na diversidade dos mensageiros angelicais, intérpretes do Silêncio divino. O paradoxo consiste na constatação da uno-diversidade, já que a deidade oculta e inacessível se expressa por meio de uma mediação imaginal, um cosmos angélico. Segundo o hermeneuta contemporâneo do drama de Cristo na Galileia, Filón de Alexandria, cuja vasta obra Corbin considerava monumental, enquanto essência Deus é sempre absconditus, escapando-nos infinitamente. Assim como o sol, que nos chega indiretamente através de seus raios, este Absoluto é apenas percebido através de suas energias, seus nomes, seus atributos: o entremundo imaginal dos arquétipos, entre o universo perceptível e a inteligência pura. Como afirma uma pepita preciosa do Evangelho de Felipe, na tradução e leitura de Jean-Yves Leloup, a verdade é una e múltipla, a fim de nos ensinar o Um inumerável do Amor.

Na cosmovisão de Plotino, fonte comum de inspiração da teosofia profética islâmica, que fundamenta uma perspectiva trinitária de pressupostos antropológicos, há uma escala descendente de emanações a partir da realidade última inefável, a não-dualidade essencial por ele denominada de UNO – simbolizado por um ponto no centro de um círculo – que se desdobra primeiro na sutileza noética da consciência contemplativa; após, no mundo informacional da alma; finalmente, na concretude do plano tridimensional físico. Do UNO é emanado Noûs, o sol simbólico da inteligência arquetípica do imaginal, correspondente ao mundo platônico das ideias, do qual é emanada a Psique, símbolo lunar, dotada da intelecção informacional discursiva do imaginário que, por sua vez, é a matriz modeladora de Soma, o corpo físico.

Nesta perspectiva ocorre a simbólica de uma Queda do Oriente do nascente das luzes ao Ocidente do ocaso das sombras, traduzida por uma desconexão da Fonte do UNO, e de suas emanações modeladoras dos universos noético e anímico. Enfim, uma dissipação alienante do mais sutil ao mais denso, que encerra o humano nos limites de uma prisão materialista e literalista, características da condição do exílio ocidental. O êxodo, ou caminho ascendente de volta do Ocidente ao Oriente simbólicos, implica na ascensão conectiva do Soma à Alma, desta a Noûs, e da consciência noética, por sua abertura e transparência, ao UNO.

Apontando para esta perspectiva, há três livros que expressam os nomes sagrados na teosofia islâmica: o Livro do Universo, o Livro do Ser Humano e o Livro Santo das escrituras. Estes livros representam, respectivamente, os três mundos assinalados por Mulla Sadra: o do Soma, o da Psique e o da Inteligência noética. Para este expoente da gnose imaginal o Corpo é o trono da Alma universal, a Alma é o trono da Inteligência universal e a Inteligência universal é o trono da Misericórdia, que expressa a Deidade.

Ressalto que sem o pressuposto de Noûs torna-se inevitável a mescla confusa entre os conceitos totalmente distintos do imaginal simbólico e do imaginário fantasioso, que ficariam fundidos em uma mesma e reducionista estância unilateral psíquica. Em suma, compreendo que o imaginal arquetípico é noético, enquanto o imaginário da fantasia é psíquico. O que converge com a afirmação de Corbin relacionada à estrutura dual, celestial e terrena, da totalidade anímica, configurada por dois rostos: o contemplativo, voltado para a dimensão noética arquetípica, e o ativo, voltado para o mundo literal da concretude. Em sinergética correspondência, também, com os símbolos evangélicos de Maria, do essencial silêncio contemplativo, e o de Marta, da ação pragmática na realidade concreta: duas faces de um mesmo semblante da inteireza psiconoética.

Corbin considera o indivíduo a realidade primeira e derradeira, que jamais pode ser reduzida e explicada, senão amplificada. A sua antropologia é também angelologia. Trata-se de concepção que remonta à Avicena, Sohravardî e Ibn Arabi: o arquétipo ou origem da pessoa é o anjo, o gêmeo ou duplo de luz, o alter ego celestial preexistente, nosso rosto original pelo qual ansiamos e perenemente buscamos. Anjo e alma conformam uma biunidade, sem confusão nem separação, na gênese do impulso imperativo de uma busca perene de uma completude, fundamento essencial da poética do Encontro.

O célebre Círculo de Eranos – uma palavra grega sugerida pelo pesquisador do sagrado, Rudolf Otto, que significa um banquete, estilo platônico, onde cada participante contribui com sua parte para a mesa comum – foi fundado por Olga Fröbe-Kapteyn na década de trinta do século XX, próximo à Ascona, na Suíça, ao lado do inspirador Lago Maggiore. Afirmo que Eranos representou um protomovimento transdisciplinar, que antecedeu em cinco décadas a Declaração de Veneza da UNESCO, constelando notáveis representantes da ciência, da filosofia, da arte e da espiritualidade, focados na investigação comum dos vínculos entre Ocidente e Oriente, na pesquisa de ponta do universo simbólico, da psicologia profunda, das tradições religiosas comparadas, com abertura a todos os campos de uma inclusiva ecologia disciplinar.

Nas suas primeiras décadas Eranos girava em torno do seu gênio tutelar, Carl Gustav Jung, cujo fecundo encontro com Henry Corbin ocorreu em 1949, desvelando uma profunda afinidade e sinergia de ousadias, de buscas e de solitudes. Com suas diferenças, Jung e Corbin se encontravam, sobretudo, em torno do tema da Sofiologia, visão filosófica de origem platônica, gnóstica e alquímica, centrada na Sabedoria transcendente do reino de esplendor da perene Sophia, mediação compensatória e fecundante no estéril domínio de um patriarcalismo decadente. Paráclito dos cristãos, Shakti dos hindus, Shekinah dos hebreus, Tara dos budistas tibetanos, Pachamama dos povos andinos, simbolizada no Eterno Feminino de Goethe, com seu quaterno de faces da Virgem, Mãe, Rainha e Deusa…

Já no final da sua existência Jung afirmava que vivemos um kairós da transfiguração dos deuses, dos princípios e dos símbolos fundamentais. A quase desesperada indagação que ele levantou segue ecoando na escuta dos seres mais sensíveis e despertos: será que o ser humano se conscientizará de que é o fiel da balança?

Neste período da história planetária, que alguns denominam de antropoceno, quando a ação humana assume um impacto global no destino da própria biosfera, é imprescindível o despertar de uma responsabilidade que brota da consciência de participação na inteireza de um universo vivo e simbólico. Como poeticamente afirmava Corbin, vivemos no seio de um cosmo onde o amor precisa anteceder o conhecimento, e a morte transmutar-se em nostalgia de ressurreição. Este desafio imperativo convoca-nos à premente tarefa de resgatar o imaginal da espécie e seu potencial criativo para a invenção de novos horizontes de uma sustentabilidade fundamentada na fraternidade aberta, em uma comum unidade entretecida de corpos, almas e consciências, como uma contribuição renovadora para as gerações vindouras, a quem temos contas a prestar.

O grande obstáculo é o que Weil, Leloup e este autor denominamos de normose, a patologia da normalidade, traduzida por uma adaptação a um sistema dominantemente desequilibrado, doente, e pela estagnação evolutiva, uma enfermidade traduzida pelo encapsulamento no ego e falta de investimento no potencial humano da alma e da consciência, um fracasso iniciático. Expressando uma anomalia da pequenez e mediocridade, a pessoa normótica se caracteriza por fazer pequeno o grande, pela alienação literalista, objetivista, triste atitude mecanicista destituída desalmada, carente de consciência. Saúde plena, que implica no imaginal, significa fazer grande o pequeno, pela conexão com o sentido, com um universo dotado de alma e de consciência, no protagonismo de uma coparticipação simbólica em uma ecologia mitopoética da Presença.

Também no final da sua existência Henry Corbin nos convocava para um combate heroico pela Alma do Mundo. Fiel à sua filiação zoroastriana, honrava o culto ao belo, à musicalidade, à uma mística do humor e à poesia que, como afirma Tom Cheetham, nasce nas bordas do Silêncio. Concepção inseparável da arte sagrada do bom combate, a partir de uma ética da cavalaria que animava os Fiéis do Amor da confraria espiritual de Ibn Arabi, de Rûzbehan de Shîraz e de Dante Alighieri. Luta apaixonada pelo anjo, pelo sentido, pela transparência de um universo compreendido como um ícone simbólico, o visível que aponta para o invisível de uma Fonte Luminosa, de onde emana a trindade do Ser, no enlace do amante, da amada e do Amor. Pablo Neruda cantou em um de seus Últimos poemas:

“Se cada dia cai dentro de cada noite, há um poço onde a claridade está presa. Há que sentar-se na beira do poço da sombra e pescar luz caída, com paciência”.

Nesta mensagem poética podemos vislumbrar a tarefa do samurai da transmutação e da paz na escuridão que envolve a humanidade de nossos tempos: pescar luz caída subjacente a tudo e a todos, resgatar a alma dos abismos do esquecimento, elevar a chama de uma consciência da consciência desvelada e conquistada… e amar, apesar de tudo, na confiança dos desígnios de um Processo invisível e silencioso que faz o dia surgir no coração da noite.

Para Corbin, o feminino sagrado da Eva eterna – aspecto da Sophia e fundamento de uma teofania da Beleza como o semblante da Majestade do Uno -, representa e manifesta a nostalgia do Anjo da Humanidade, o profundo desejo que conduz ao homólogo ou outro celestial, a face angélica que nos antecede e segue adiante, impulsionando um processo de renovação perene. Na visão gnóstica iraniana, os arquétipos angélicos tutelares femininos dos seres humanos são denominados de fravartis que, em um drama da hierohistória, se comprometeram a lutar com seus duplos terrenos a favor da Luz de Ahura Mazda, contra as sombrias e malignas forças da separatividade de Ahrimã, pela cura da humanidade e a transfiguração da Terra. Ardente utopia – do que ainda não teve espaço para realizar-se -, no cerne da obra e do sonho profético de Henry Corbin.

Segundo Durand, o título da última conferência de Corbin, na sua Universidade São João de Jerusalém, focava o tema, Os vagabundos do Ocidente e os Peregrinos do Oriente. Nesta significativa provocação está contida o desafio norteador evolutivo, do vagabundear errante ao peregrinar resiliente, metanoia de uma existência desorientada e desnorteada que se transmuta em jornada consciente rumo ao alvo da Luz perene, Ex Oriente Lux, o Norte do Amor e do Ser.

Eis a grande conspiração de Corbin para os nossos críticos e criativos tempos. Necessitamos de uma ponte para não despencarmos no abismo do absurdo, do esquecimento e repressão do essencial, da perda do sentido. Os platônicos da Pérsia a denominavam de ponte Cinvat, onde o peregrino e peregrina, após a missão cumprida, ao deixar seu corpo no portal derradeiro do existir, no mundus imaginalis finalmente abraça Daena, o seu Anjo e ancestral gêmeo de Luz, em enlace de um redentor reencontro, no sagrado segredo do sorriso de uma inteireza finalmente reconquistada.

Pierre Weil também nos convocava para um combate, com as armas da consciência, para a superação da fantasia da separatividade, origem de todos os apegos, de onde decorrem os sofrimentos e sintomas de uma enfermidade primária: a ignorância existencial. Necessitamos de trilhas iniciáticas com coração, a caverna simbólica da imaginação criadora, para herdarmos a terra prometida indicada por todas as tradições sapienciais: coincidentia oppositorum, além do reino das polaridades, integração dos opostos, onde impera a lei suprema da compaixão, meta última de todas as autênticas gnoses. A metáfora do resgate de um paraíso perdido aponta para a boa notícia de um Evangelho da inteireza humana no jardim reconstruído da Terra, entretecido de todos os reinos, da ameba ao Serafim, onde tudo e todos cantam, numa só voz, o mantra de um mesmo Aleluia, louvor ao Ser que É.

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Antropólogo, Psicólogo e Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade de Paris, Roberto Crema é Reitor da Universidade Internacional da Paz - UNIPAZ. Implementador da Formação Holística de Base no Brasil e coordenador, durante vinte anos, do Colégio Internacional dos Terapeutas, é orientador, com a Lydia Rebouças, de uma formação no cuidado integral, Quinta Força em Terapia, na UNIPAZ de Brasília. Pioneiro na abordagem transdisciplinar holística, Crema viaja pelo Brasil e pelo mundo proferindo palestras e orientando cursos e seminários. É autor e coautor de mais de trinta livros, tais como “Introdução à Visão Holística”, “Saúde e Plenitude”, “Antigos e Novos Terapeutas”, “Pedagogia Iniciática” e “Mensagens do Deserto”.

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