Os vínculos enriquecem a experiência humana e sedimentam a percepção de pertencimento. Porém o mundo vive, cada vez mais, tempos de um intenso sentimento de individualismo. Nesta entrevista a Bastidores, Roberto Crema, psicólogo e reitor da Unipaz, que este ano completa 30 anos, fala sobre individualidade e conexões.
BASTIDORES: O individualismo parece estar sendo fortemente pressionado a dar lugar à consciência de que estamos todos conectados. Como manifestar de forma positiva e real essas relações porém considerando as particularidades individuais?
ROBERTO CREMA: Há duas tendências fundamentais na natureza humana: uma para a diferenciação e outra para a fusão. A primeira é auto afirmativa, uma força que impele a pessoa para diferenciar-se rumo à sua singularidade única e misteriosa. A segunda é uma força de pertencimento que impulsiona a pessoa rumo a um todo maior, uma tendência ao pertencimento que conduz a uma comum unidade (comunidade). Trata-se, portanto, de dois impulsos naturais inerentes a todo organismo, definidores da sua condição de individualidade e de vinculação. Do equilíbrio dessas duas forças depende a saúdo do indivíduo. Como afirmavam os antigos gregos, “Nada em excesso”. O exagero no processo da diferenciação conduz ao individualismo exacerbado, +a competitividade compulsiva, ao isolamento egocêntrico, aos conflitos infindáveis causados pelo império da ilusão da separatividade. Um excesso de fusão conduz ao naufrágio na massa indiferenciada, à confusão e alienação simbiótica, à loucura coletiva do totalitarismo.
BASTIDORES: O que seriam conexões verdadeiras e significativas que nos fortalecem como grupo em nossos propósitos mútuos?
ROBERTO CREMA: Tenho dito há décadas que ninguém transforma sozinho; nós nos transformamos no encontro. O autêntico encontro emana do mistério que é próprio do amor, que simultaneamente nos une e nos diferencia, tornando-nos ao mesmo tempo únicos e inseparáveis. Somente em uma comunidade de seres diferenciados uma verdadeira democracia poderá ser exercitada, na conjunção de uma ética da diversidade e da não-separatividade.
BASTIDORES: Por que, muitas vezes, costumamos impor resistência em criar essas conexões e vínculos?
ROBERTO CREMA: A fase do Narciso, do enamorar-se mirando a si mesmo, é natural e deve anteceder a conquista da alteridade, onde precisamos ir além, abrir um espaço em nós para o estranho, o outro. Para que sejamos capazes da maturidade do diálogo, é preciso silenciar-se interiormente para realmente escutar, de forma não projetiva, a voz mensageira da outra pessoa. Desta dinâmica depende a riqueza alquímica do encontro que transforma e recria. A resistência ao diálogo procede da imaturidade e da insegurança típicas do apego, de um temor do desconhecido que é visto apenas como ameaça, e não como um fator de enriquecimento e de renovação. Tristes tempos os nossos onde impera o desencontro da mesmice, o mde de abrir-se ao novo, cada qual com sua bandeira e sua compulsividade ideológica, debate surdo e estéril no qual é projetado na outra pessoa o que se desconhece em si mesmo.
BASTIDORES: O que o senhor recomendaria como práticas que podemos adotar a fim de nos tornarmos agentes de união e integração, e com isso impactarmos na harmonia do conjunto? Quais seriam os pilares das conexões positivas?
ROBERTO CREMA:Há caminhos distintos e complementares para se aprender a bem vier consigo, com o outro, com a comunidade, com a natureza e o próprio mistério da vida: o do saber e o do ser.
Para saber Necessitamos de conhecimento, do exercício de uma razão analítica e crítica, funções que simbolicamente estão inscritas no hemisfério cerebral esquerdo da lógica, da racionalidade, da previsão e da angústia humana. Este caminho é o que no Ocidente temos desenvolvido quase que unilateralmente, em função do paradigma do racionalismo científica que, no século 17, deu origem à idade moderna. Para ser, necessitamos de nos esvaziar do passado e do futuro, de silêncio interior, de desenvolvimento de uma inteligência sintética ou simbólica próprias do coração e da intuição, que se logra por trilhas da contemplação, da meditação, do que no universo acadêmico atualmente é de denominado de de mindfulness (plena atenção). Quando a nossa mente se esvazia, anossa taça transborda. Esse é o caminho milenar da sabedoria oriental. Mas é importante enfatizar que estas não são vias antagônicas, e sim, complementares, que nos conduzem ao universo compreensivo de uma inteligência integral.
Roberto Crema acaba de lançar o livro “O poder do Encontro – Origem do Cuidado”.