Nenhuma época acumulou sobre o ser humano conhecimentos tão numerosos e tão diversos quanto a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar seu saber do ser humano sob uma forma tão pronta e tão facilmente acessível. Mas também nenhuma época soube menos o que é o ser humano.

MARTIN HEIDEGGER

Eis um aspecto desafiador e paradoxal da crise contemporânea: a existência de uma hipertrofia de informações e de conhecimentos, de acesso amplo, irrestrito e imediato, ao mesmo tempo em que sofremos de uma atrofia do processo de discernimento e de compreensão. Como bem denuncia Heidegger, nunca estivemos tão alienados com relação à questão humana.
Sobre a compreensão da realidade, Basarab Nicolescu (1) inicia o seu livro, Qu’est-ce que la réalité?, de forma contundente: “A palavra ‘realidade’ é uma das mais prostituídas de todas as línguas do mundo. Todas as pessoas acreditam saber o que é a realidade mas, quando nos interrogamos, descobrimos que há tantas concepções desta palavra quantos são os habitantes da terra. Assim, não é surpreendente que os inumeráveis conflitos agitam, sem cessar, os indivíduos e os povos: realidade contra realidade. Nestas condições, é por algum tipo de milagre que a humanidade ainda existe (…). Todavia, a tripla revolução que atravessou o século XX – a revolução quântica, a revolução biológica e a revolução informática – deveria mudar, em profundidade, nossa visão da realidade.”
Necessitamos, portanto, refletir sobre o que nos impede de atualizar nossos referenciais e o que pode nos abrir ao universo possível de uma compreensão intrapessoal e interpessoal, subjetiva e intersubjetiva, no âmbito de uma ecologia trinitária: individual, social e planetária.
Entre os obstáculos exteriores à compreensão intelectual, Edgar Morin (2) aponta para a existência do “ruído”, a falta de entendimento causada pela polissemia dos conceitos, a ignorância dos ritos, hábitos, valores e imperativos éticos alheios, a incompatibilidade de visão de mundo e a desigualdade das estruturas mentais. Quanto às dificuldades de ordem interna, Morin indica o egocentrismo, o etnocentrismo e o sociocentrismo. Talvez possamos ampliar estas lúcidas considerações afirmando a existência de um mega-fator impeditivo da compreensão, que consiste no que Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e este autor (3) denominamos de normose, uma patologia da normalidade.

O obstáculo da normose

Pierre Weil (3) conceitua a normose como anomalias da normalidade conformadas de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar e de agir, que são aprovados por consenso ou pela maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e morte.
Para contextualizar, refletirei sobre a existência de três fundamentos da normose. O primeiro é o sistêmico: esta patologia da mediocridade surge quando o sistema onde vivemos encontra-se, dominantemente desequilibrado, mórbido e corrompido; quando o que predomina são contradições ou sintomas como o da falta de escuta, de respeito, de cuidado e de fraternidade, bem como a alarmante e crescente violência contra o indivíduo, a sociedade e a natureza. Neste contexto, uma pessoa “normal”, ou melhor, normótica, é aquela ajustada ao sistema enfermo e que contribui para a manutenção do status quo. Sabemos, pela própria carta constitutiva da Organização Mundial de Saúde (1946), que a saúde não é ausência de sintomas e, sim, a presença de um estado de pleno bem-estar somático, psíquico e social. Posteriormente foi acrescentado o fator ambiental e o espiritual. O que significa que, quando um sistema encontra-se, em grande medida, num estado patológico, a pessoa saudável é a que manifesta um estado de desajustamento consciente, uma indignação lúcida e, até mesmo, um desespero sóbrio.
O segundo fundamento é o evolutivo, que parte do princípio do inacabamento do humano, como afirmava Paulo Freire (4). É o que podemos traduzir afirmando que não nascemos humanos; nós nos tornamos humanos, através de um investimento sistemático no potencial de autodesenvolvimento, de maturidade e de uma plenitude possível. Falando de outro modo, o ser humano introduziu outra ordem de complexidade na qualidade evolutiva do planeta, que se traduz pela evolução consciente e intencional. Além dos acasos e das necessidades, das mutações genéticas aleatórias e dos combates entre os mais aptos, da seleção natural darwiniana, a evolução humana consiste no desenvolvimento da consciência, que solicita um trabalho sobre si mesmo em trilhas evolutivas de individuação. Como afirmava Teilhard de Chardin (5), as coisas não são aparecidas no Universo: elas são nascidas, tendo gestação e evolução, sendo que certas direções evolutivas privilegiadas levam à novidade, ao salto qualitativo do evento. Para este pioneiro do estudo da complexidade, os dois grandes eventos universais consistiram na passagem da pré-vida para a vida e desta para o pensamento. Enfim, do fantástico aumento de complexidade surge o Ser Humano e sua consciência reflexa, o pensamento. Esta nova qualidade de uma evolução consciente e intencional, característica do humano, é sustentada pelas cartografias contemporâneas da abordagem integral da consciência, a exemplo da pesquisa de Maslow (6), de Rogers (7), de Jung (8, 9), de Grof (10, 11) e de Wilber (12, 13), para citar alguns poucos representantes do movimento humanístico e transpessoal da ciência psíquica de ponta.
Morin (2), que postula um aspecto meta-natural do humano, afirma que a hominização nos conduziu a um novo início: o hominídeo humaniza-se e, assim, o conceito do humano adquire um duplo princípio, biofísico e psico-sócio-cultural, ligados dialeticamente. Nas suas palavras: “Desenvolvemo-nos além do mundo físico e vivo. É neste “além” que tem lugar a plenitude da humanidade”. Neste sentido, a normose se caracteriza pela falta de investimento no potencial psíquico, ético e noético, representando um estado de estagnação da evolução consciente, propriamente humana.
O terceiro fundamento é o paradigmático, falando no sentido mais amplo que Thomas Kuhn (14) imprimiu a este conceito. Neste caso, a normose surge quando um paradigma, embora já esgotado no seu potencial criativo e, em algum grau, esclerosado, ainda prevalece, com relação a outro emergente, postulado por um grupo minoritário. Como afirmava Max Planck, segundo Kuhn (14), “Uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes e fazendo com que vejam a luz, mas porque seus oponentes finalmente morrem e uma nova geração cresce familiarizada com ela”. Felizmente, existem exemplos de cientistas, filósofos e de grandes pensadores – Edgar Morin representa um ícone desta possibilidade, com a sua vasta obra, que ousa uma reconfiguração dos saberes -, capazes de uma abertura destemida para o novo, com a prudência lúcida de preservar o positivo do antigo. Trata-se da nobreza indicada por esta paradoxal e feliz expressão de Henry Thoreau (15), a maioria de um!…
Por outro lado, o conceito de normose encontra-se em ressonância com algumas reflexões de Morin (2), sobre os sete saberes, sobretudo quando, ao analisar as cegueiras do conhecimento, ele fala sobre a força normalizadora do dogma e a proibitiva do tabu, bem como sobre o determinismo de convicções e de crenças e os conformismos cognitivos e intelectuais, que podemos designar como uma normose cognitiva da normalização. Da mesma forma, Morin se refere ao imprinting cultural como uma marca matricial, que estabelece um tipo de conformismo incontestável, que podemos considerar como uma normose do imprinting cultural.
Por ocasião do Encuentro Holístico Internacional, em Mendonza (16), travei contato com Manfred Max-Neef, Prêmio Nobel alternativo de economia. Na sua conferência, este célebre cientista afirmou que, desde muito cedo, se questionava sobre o que seria a característica singular da espécie humana. A cultura, a inteligência, a linguagem?… Não, pois outras espécies também as desenvolvem. Seria o humor? No seu encontro com outro cientista, Nobel da etologia, Konrad Lorenz, ele soube que não: há outras espécies bem humoradas. Assim, ele prosseguiu com esta indagação até um momento inesperado, no qual o seu pai, um homem por quem ele nutria um grande respeito, lhe indagou: – Meu filho, não será a estupidez?
Max-Neef afirmou que, nesse instante, uma luz se fez e ele se tornou o primeiro estupidólogo! A estupidologia é uma ciência que precisa ser estudada com rigor e urgência. É importante esclarecer que ela se diferencia da inofensiva imbecilidade, por se revestir de racionalidade lógica, sendo exercida, principalmente, através de uma linguagem técnica. A devastação suicida do ecossistema planetário, por exemplo, pode ser justificada ou racionalizada estupidamente, através de uma lógica desenvolvimentista. Eis uma imagem que pode ser uma metáfora desta atitude tão em voga: um homem serrando um galho da árvore – com um elegante discurso sobre o progresso, bem fundamentado estatisticamente -, exatamente onde ele se encontra sentado! Outro notável Prêmio Nobel, Albert Einstein costumava afirmar que, para ele, apenas duas coisas eram infinitas: o universo e a estupidez humana. E quanto ao universo, concluía ironicamente o sábio, ele ainda não estava totalmente seguro!…
Edgar Morin (17) se refere a esta mesma realidade, quando fala da existência de dois cretinismos. O primeiro é o de baixo, de uma cultura de massa banal e de uma mídia alienada, que o mundo universitário, segundo o autor, gosta muito de denunciar. Entretanto, de acordo com Morin, há também uma cretinice do alto, pela qual ele sente uma particular repugnância, própria de uma sub-cultura oficial e intelectual, certo obscurantismo racionalizado, caracterizada pela ignorância e julgamentos a priori, com estereótipos, conformismos e arrogantes idéias convencionais, o que podemos denominar da normose do cientificismo.
Considero a estupidez, assim como a agressão passiva, traduzida pela indiferença dos que não se importam com o bem comum e pela causa humana – que Mahatma Gandhi considerava pior e mais destrutiva do que a violência ativa -, duas características das mais importantes desta doença, insidiosa e trágica, que denominamos de normose.
Como afirma Basarab Nicolescu (1), três e trans possuem uma mesma raiz etimológica, sendo que o três significa a transgressão do dois, assim como a transdisciplinaridade é a transgressão da dualidade binária, rumo a uma pluralidade complexa e a uma unidade aberta, duas faces de uma mesma realidade. Adotando o nosso conceito, Nicolescu afirmou, num congresso em Strasbourg (18), que é preciso ir além da normose do binário.
Enfim, para logramos o que Morin denomina de ética da compreensão – centrada na solidariedade intelectual e moral, a serviço do gênero humano -, necessitamos transgredir a normose, que se encontra nos fundamentos da crise civilizacional contemporânea.
As funções psíquicas
De acordo com a vasta pesquisa do psiquiatra Carl Gustav Jung (19), há quatro funções psíquicas, inerentes ao ser humano: a do pensamento, a do sentimento, a da sensação e a da intuição. Não é difícil constatar que o diálogo entre o pensamento (racionalismo) e a sensação (empirismo) deu origem à ciência contemporânea. Assim como da aliança da sensação com a intuição deriva a arte; do pensamento com a intuição, a filosofia e do sentimento com a intuição, a mística, da Tradição sapiencial. Assim, quanto ao fundamento individual, os conhecidos quatro fragmentos clássicos epistemológicos surgem da dinâmica criativa de nossas funções psíquicas.
De forma geral, o indivíduo apenas desenvolve uma ou duas destas funções, sendo que as demais permanecem atrofiadas e indiferenciadas. O desenvolvimento das funções deficitárias e a sua integração e harmonização com as demais conduz, segundo Jung, a uma quinta função, que ele denominou de Self, uma inteligência da totalidade psíquica. O enfoque pioneiro junguiano postula, além da mera cura, um processo de individuação que possa conduzir o indivíduo, através de uma via interior e num movimento de circunvolução, da periferia do ego para a centralidade do Self, que é a instância psíquica de onde emana a real compreensão.
Na teoria fundamental da Universidade Internacional da Paz, UNIPAZ, desde o seu evento deflagrador, o I Congresso Holístico Internacional – I CHI, que realizamos em Brasília (1987), esta concepção das funções psíquicas nos orientou, encontrando-se, também, no cerne de nosso consagrado projeto transdisciplinar, com mais de vinte anos de fecunda prática, da Formação Holística de Base – FHB.
Como constata o próprio Morin, não necessitamos pregar a paz, já que todos sabem da sua importância como o único caminho para evitarmos os horrores da guerra. O que realmente urge é uma pedagogia da compreensão humana. Em última instância, educar para a paz é educar para a compreensão. Como? Deparamo-nos, aqui, com a necessidade de uma educação integral, que concilie a dimensão do saber com a do ser.
Falando de outro modo, a compreensão é uma expressão natural da convergência do saber com o ser. Não compreendemos apenas com o saber e nem apenas com o ser. Eis uma aliança perdida, que necessitamos resgatar. Como afirma Ubiratan D’Ambrosio, trata-se de evoluir da arrogância do saber para a humildade da busca. A autêntica busca solicita a elegância da douta ignorância do não saber. Saber não saber, eis a questão! A arte transdisciplinar consiste no equilibrar o saber com o não saber, o aprender com o desaprender, o adquirir conhecimentos com o esvaziar-se do conhecido, o pensar com o não pensar, a reflexão com a contemplação, a palavra com o silêncio…
O paradigma cartesiano do racionalismo científico, que se caracteriza, segundo Morin, pela disjunção, redução e abstração, centrado exclusivamente no saber, foi muito competente para desenvolver uma sofisticada tecnociência que se encontra, infelizmente, desconectada do hemisfério do ser, de onde emanam os valores de uma ética essencial. E sabemos muito bem as conseqüências de uma tecnologia poderosa e desorientada, da ciência sem consciência, da efetividade sem afetividade. Este é o imenso valor de um documento de base da própria UNESCO (1992) que propõe, sustentada na pesquisa e no relatório de Jacques Delors (20), os quatro pilares de uma nova educação transdisciplinar: educar para conhecer, educar para fazer, educar para conviver e educar para ser. Com os modelos pedagógicos convencionais, de modo fragmentado, temos educado apenas para o conhecer e para o fazer. O imenso e estimulante desafio, que tem a ver diretamente com a questão da compreensão, é educar para conviver – viver consigo, com o outro, com os outros, com a natureza – e, sobretudo, educar para ser.

Holologia e Holopráxis

A célebre Declaração de Veneza (1986), documento redefinidor que resultou de um colóquio organizado pela UNESCO (21), centrada no tema, A ciência face aos confins do conhecimento: o prólogo de nosso passado cultural, no seu segundo artigo afirma: “O conhecimento científico, por seu próprio movimento interno, chegou aos confins, onde pode começar o diálogo com outras formas de conhecimento. Neste sentido, reconhecendo as diferenças fundamentais entre a ciência e a Tradição, constatamos não a sua oposição, mas a sua complementaridade. O encontro inesperado e enriquecedor entre a ciência e as diferentes Tradições do mundo permite pensar no aparecimento de uma nova visão da humanidade, até de um novo racionalismo, que poderia levar a uma nova perspectiva metafísica”.
Apontando para esta mesma direção, Morin (2) postula uma racionalidade autocrítica e aberta, capaz de integrar aspectos do que outras culturas não européias desenvolveram e que foram atrofiados no Ocidente, de modo a reparar o ativismo, o pragmatismo, o “quantitativismo” e o consumismo. Mas também salvaguardar, regenerar e disseminar o melhor da cultura ocidental: a democracia, a proteção individual e os direitos humanos.
Pierre Weil (22), para fazer frente a esta lúcida convocação, desenvolveu dois conceitos complementares, que são fundamentais nesta tarefa premente de integrar o hemisfério do saber ao do ser: o de holologia e o de holopráxis. Holologia refere-se à via racional, de estudo, reflexão crítica e de experimentação do paradigma holístico, destinado à dimensão do saber, enquanto a holopráxis consiste no caminho vivencial, de despertar para a visão holística, através de práticas provenientes das Tradições sapienciais, do Oriente e do Ocidente, visando à dimensão do ser.
Apresentamos a integração destas duas vias complementares já no citado I CHI. A holologia, através das conferências, simpósios e sessões de temas livres. A holopráxis, através de espaços vivenciais, facilitados por representantes de diversas Tradições ocidentais e orientais. Da mesma forma, estes dois métodos encontram-se presentes na FHB e em todos os programas e projetos da UNIPAZ, pois é o seu exercício conjugado que abre caminho para a compreensão humana que, por sua vez, é a via direta para a paz.
Método analítico e sintético
Para a elucidação do processo da compreensão, considero imprescindível um aprofundamento na reflexão metodológica envolvida. O que me remete a uma pesquisa, que desenvolvo há mais de duas décadas, no contexto clínico e educacional, sobre a sinergia de dois caminhos de apreensão da realidade: o da análise e o da síntese (23, 24).
Todos nós, ocidentais, fomos condicionados para a análise, já que o método analítico encontra-se no cerne do paradigma da modernidade, que representou um resgate necessário, compensatório e iluminista, da razão crítica, cuja grande contribuição, no século XVII, foi a de ter evidenciado a consciência dual de diferenciação.
Esboçando um breve resumo, o método analítico é um importante fruto do racionalismo científico, que se ergueu como saudável e necessária resposta ao momento decadente de um indiferenciado obscurantismo medieval, que fazia uma simbiose perversa entre religião e ciência, sob a tirania da Inquisição. Focaliza a parte, buscando as unidades constitutivas, atuando como eficiente bisturi retalhador de totalidades. Diz respeito ao conceito grego de diabolos, o que divide. Gerou o enfoque disciplinar de onde é modelado o especialista, caracterizado pela tendência reducionista e unilateralidade de visão e de ação. A sua base é somática, substancialista. Fundamenta-se nas funções psíquicas do pensamento e da sensação. Sustentado na física mecânica, inclinou-se para um enfoque mecanicista e o seu realismo clássico, que destaca a continuidade, a simplicidade, a causalidade local e a objetividade. Caracteriza-se pelo aspecto quantitativo, perseguindo o ideal da codificação matemática. Conforma a base da identidade egóica, de cunho pessoal. Parte da lógica linear da causalidade local, prescrevendo a existência de leis necessárias e gerais, que engendram o determinismo, com pretensão de controle e de previsibilidade. Veste o aparamento sofisticado da exatidão. É progressivo e acumulativo. Parte de uma atitude básica extrovertida, afirmando-se como excelente instrumento de estudo e de exploração do espaço exterior. Tem como meta ideal a objetividade e a isenção valorativa, excluindo o sujeito do campo da ciência. Sua vocação é experimental: seu produto típico é gerado em laboratórios sofisticados com manipulação impecável de variáveis. Seu substrato metafórico neurofisiológico – levando em conta a interconexão cerebral – é o hemisfério dominante, geralmente o esquerdo, da racionalidade, predição e também da angústia humana. Caracteriza a mentalidade típica do ocidental. Postula uma função explicativa: objetiva explicar ativamente o universo. Denominamos de analista ao agente deste método clássico.
Após o grande avanço do Iluminismo do século XVIII, este método iniciou a dar mostras de um esgotamento e de insuficiência, tornando-se fonte de cada vez mais visíveis contradições. Como afirmou Ken Wilber (25) o que era consciência de diferenciação e espírito científico no século XVII degenerou-se, no século XIX, em dissociação e cientificismo. Esta via, trilhada exclusivamente, nos conduziu ao que denomino de uma síndrome de analisicismo, caracterizada por sintomas como os da fragmentação, dissociação, desvinculação, perda de valores fundamentais e de uma atrofia da subjetividade, da intersubjetividade, enfim, da própria interioridade. Como afirmava G. K. Chesterton, o pior louco é o que perdeu tudo, exceto a razão.
Coube ao gênio do filósofo alemão, Wilhelm Dilthey (26), no século XIX e início do XX, demonstrar a necessidade de outro método, além do analítico. Denunciando as contradições do caminho reducionista científico-natural, na sua teoria da compreensão expressiva, Dilthey fundamenta as ciências do espírito, posteriormente designadas de ciências humanas, afirmando o ser humano como uma unidade, muito além de um conglomerado de átomos. Transcendendo o positivismo, na sua proposta histórico-biográfica, Dilthey prescreve dois caminhos: o da descrição da vida e o da compreensão da vida por si mesma. “A natureza se explica, a alma se compreende”, bradava o filósofo, afirmando a vida como um mistério insondável, suscetível de ser compreendida por si mesma, como um ritmo todo-e-parte, que pode ser vivenciado, o que desvela significados – mas não explicado. Segundo Christine Delory-Momberger (27), afirmando a diferença radical que constitui o sujeito humano, Dilthey desenvolveu, contra os métodos analíticos e generalizantes do positivismo sociológico, uma epistemologia fundada sobre o reconhecimento do humano pelo humano, ou seja, sobre a experiência vivida e a compreensão, sendo que o ser humano e a sociedade encontram-se numa relação de inclusão e de ação recíprocas. Tendo consolidado as bases da atual abordagem biográfica, Dilthey considerava a autobiografia como um paradigma de inteligibilidade, a forma mais elevada e instrutiva, a partir da qual se manifesta, para nós, a compreensão da vida.
Seguindo-se a contribuição singular e marcante de Dilthey, outras significativas vozes se levantaram, clamando pela síntese. Jan Smuts (28), no seu enfoque evolutivo, desvelou o conceito de holismo, definido como um princípio único, organizador de totalidades e criador de conjuntos, num Universo que é sintético, vital e criativo. Carl G. Jung (29) desenvolveu uma interpretação de sonhos em nível do sujeito, denominando-a sintética. Roberto Assagioli (30) desenvolveu uma psicossíntese. Viktor Frankl (31) criou a sua escola de Logoterapia, suportada numa metodologia sintética. Karlfried Graf-Durckhein (32, 33) fundou a terapia iniciática, prescrevendo o que denominava de exercício – uma prática meditativa, de natureza sintética -, para que a essência possa transparecer na existência. Ramon Soler (34) fundou, na Argentina, uma Universidade de Síntese, na qual o método da síntese é também uma via de integração humana. O sábio hindu J. Krishnamurti (35, 36) cuja vida e obra, dedicadas absolutamente ao essencial, mereceu um significativo destaque na abordagem transversal de René Barbier (37 ), pode ser considerado um símbolo vivo de encarnação da síntese.
Resumindo, o método sintético delineou-se no final do século XIX, como uma resposta à crise de fragmentação, de dissociação, de desvinculação, enfim, de desumanização. Focaliza a totalidade, a interconexão, a forma, o contexto, visando o processo de vinculação e de unificação. Sua tendência é amplificadora e integrativa. Diz respeito ao conceito grego, oposto ao do diabolos, de symbolos, o fator que religa e restabelece a inteireza. Valorizando a visão inclusiva e global, encontra-se na base do ideal do generalista. É uma via qualitativa, que se indica mais por uma linguagem mitopoética e arquetípica. Fundamenta-se nas funções psíquicas do sentimento e da intuição. Parte de um espaço de indeterminismo, de liberdade e de responsabilidade. A sua base é psíquica e noética. Enfatiza a participação e a singularidade. Ocorre na instantaneidade, no salto abrupto, no insight: é não-cumulativo. Através de uma lógica da simultaneidade, abre-se para o universo aberto da sincronicidade, as coincidências significativas ou princípio de conexões acausais, da transcausalidade, de acordo com a pesquisa junguiana. Reveste-se de tecido vivo, flexível, impreciso, desapegado da exatidão. Amplia-se no aspecto descritivo e biográfico. Guia-se por uma visão introspectiva que descortina e investiga o espaço interior. Abre-se para o além do ego, para a consciência transpessoal. Sustenta-se na microfísica e no realismo quântico, caracterizado pela descontinuidade, princípio de superposição, não-separatividade, não-localidade e indeterminismo. Assume um caráter consciencial subjetivo, a intersubjetividade e os valores. Focaliza a finalidade, o significado, o sentido. Sua vocação é experiencial: seu produto típico é fruto do laboratório vibrante da vivência humana. Seu substrato metafórico neurofisiológico é o hemisfério cerebral não dominante, geralmente o direito, da gestalt, da musicalidade, da poesia e da mística. Caracteriza a mente clássica do oriental. Não se distingue do sujeito. Exerce uma função compreensiva e de comunhão participativa. Denomino de sintetista ao agente deste caminho de apreensão da realidade.
Relaciono, de forma sumária e indicativa, no esquema abaixo, as características básicas do método analítico e do método sintético:

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Arte da integração: o três

É fundamental sublinhar que o método analítico e o sintético não se encontram na relação de antagonismo e, sim, na de complementaridade. O conceito de complementaridade advém da quântica, tendo sido proposto por Niels Bohr, para solucionar o paradoxo partícula-onda, da microfísica. O mesmo pode ser aplicado ao paradoxo metodológico análise-síntese. Uma ênfase unilateral na análise nos conduz ao reducionismo enquanto, na síntese, nos leva ao totalitarismo, extremos equivocados, que precisamos evitar. Gosto de representar o valor inestimável desta heurística sinergia metodológica com o símbolo do infinito aliando, numa dinâmica de interações constantes e paradoxais, o método analítico e o sintético:

Arthur Koestler (38), sustentando que parte e todo inexistem no domínio da vida, conciliou o atomismo com o holismo, através do seu conceito de hólon – onde holos se refere ao todo e on à parte – referindo-se a um sistema aberto e auto-regulável que apresenta, ao mesmo tempo, propriedades autônomas de um todo e dependentes de uma parte. No seu enfoque, o organismo é considerado como uma hierarquia multinivelar de subtodos, dotados de autonomia relativa.
O símbolo koestleriano para hólon é uma divindade da mitologia romana, Jano, que portava duas faces, voltadas em sentido contrário: uma para frente, representando o futuro e a outra mirando para trás, simbolizando o passado. Assim também cada subtodo, inserido numa escala em ordem ascendente de complexidade possui uma face do “todo”, voltada para os níveis subordinados, enquanto a outra face, voltada para o ápice, é a de uma “parte” dependente.
“Homem algum é uma ilha: cada ser humano é um hólon. Uma entidade bifronte como Jano que, olhando para o seu interior vê-se como um todo único e completo em si mesmo e, olhando para fora, vê-se como uma parte dependente. A sua tendência auto-afirmativa é a manifestação dinâmica de sua condição de todo único, da sua autonomia e independência como hólon. A tendência antagônica, também universal, que é integrativa, expressa a sua dependência do todo maior que integra a sua condição de parte”, afirma Koestler (38).
Falando de outro modo, há duas tendências básicas na natureza viva: uma de diferenciação e outra de fusão. A de diferenciação é auto-afirmativa, uma força centrífuga que impulsiona para a diferença, a singularidade. A de fusão é integrativa, uma força centrípeta que impulsiona ao pertencimento, à interconexão. A tarefa da saúde é a de manter um equilíbrio sinergético entre essas duas dinâmicas, já que o excesso de diferenciação conduz à patologia do individualismo excluidor e do isolamento. Enquanto o excesso de fusão determina a alienação da simbiose e do absolutismo.
Em convergência, Martin Buber (39) afirma que o duplo movimento de separação e relação define o princípio da vida humana e que só ocorre a relação autêntica quando o outro é colocado na distância justa, para que seja possível o Eu-Tu. Caso contrário, ficamos condenados a uma relação objetal e redutora, que Buber denomina de eu-isto.
Assim, necessitamos da sinergia entre o método analítico – de diferenciação – e o sintético – de fusão. Nem um, nem dois, não mesclar, não separar: eis um princípio transdisciplinar, que solicita o três.
A riqueza do três é a de conter, em si, o um da fusão e o dois da diferenciação. Falando na metáfora do substrato neurofisiológico, o exercício salutar e sábio da integração respalda-se no corpo caloso, que liga os dois hemisférios cerebrais, o da análise e o da síntese. O que a Tradição sapiencial simboliza como a terceira visão ou o chifre do unicórnio. Por esta razão, Carl Sagan (40) afirma que o futuro da educação depende do corpo caloso. Podemos acrescentar: também o da compreensão!
O Tao da compreensão
Lao Tsé (41) afirmava que o alto descansa no profundo. Parodiando o sábio taoista, podemos afirmar que a síntese descansa na análise. O todo descansa na parte, o céu descansa na terra, as asas descansam nas raízes…
Na sua obra, Edgar Morin (17) insiste muito num pensamento de Pascal, uma verdadeira pérola da visão holística: “Todas as coisas sendo causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas e todas se entrelaçando umas às outras, por um laço natural e insensível que liga as mais distantes e as mais diferentes, acho impossível conhecer as partes sem conhecer o todo; também acho impossível conhecer o todo sem conhecer as partes.
O sábio e inspirador conceito do Tao, da Tradição chinesa (41), indica a integração do princípio masculino Yang com o feminino Yin, numa simbólica de interpenetração dos contrários e de harmoniosa transcendência dos opostos. Podemos considerá-lo um símbolo do caminho que conduz à compreensão.
Por outro lado, uma pedagogia da compreensão solicita, de forma imperiosa, a ciência e arte da hermenêutica, sobretudo através do resgate da inteligência simbólica. Inteligência advém de inteligere, que significa ler dentro – das letras, dos fatos, das vivências. É esta leitura simbólica que nos permite superar a estupidez normótica de certo literalismo simplista de superfície, fonte dos fundamentalismos e fanatismos tão atuais, não apenas religiosos, mas também ideológicos, mercadológicos, pedagógicos, entre outros. É a hermenêutica que possibilita a necessária apreensão e compreensão da pluralidade de significados e sentidos inerentes a cada fenômeno, a cada crise, a cada vivência.
A capacidade de interpretar vai além do exercício analítico da explicação, incluindo a via sintética, que sonda o sutil e o interior, capaz de extrair uma polissemia de sentidos implicada em cada experiência humana. É também a interpretação que nos eleva da condição de objeto de fatos e de circunstâncias, para o estatuto de sujeito da própria existência, dotado do dom da liberdade. Não somos livres com relação ao que nos acontece; nossa liberdade consiste naquilo que fazemos com o que nos acontece, o que solicita uma arte da escuta que, além da mera audição é, também, interpretação. Um sujeito habilitado no exercício de interpretar, no sentido amplo e transdisciplinar, é também capaz de superar os mais árduos desafios existenciais. Pois a única crise destrutiva que pode ser fatal é aquela, para a qual, não conseguimos extrair nenhum sentido, pela incapacidade de escuta e de hermenêutica.
Os grandes mestres e educadores da humanidade sempre nos alertaram para o perigo do julgamento, que se encontra na fonte de tantos conflitos e dilaceramentos. A compreensão é um eficaz antídoto deste destrutivo jogo bélico de poder, pois quem compreende não julga. O julgamento é o fracasso da escuta e da compreensão.
Edgar Morin (2) afirma, de forma lúcida e ousada, a missão espiritual da educação, na tarefa intersubjetiva de ensinar a compreensão, através das virtudes conjugadas da abertura, da simpatia e da generosidade. Trata-se de uma arte de viver com solidariedade intelectual e moral e com dialogicidade, capaz mesmo de compreender a incompreensão, sem complacência nem acusação, a serviço do homo sapiens demens, da metamorfose e da nossa comunidade de destino.
O Tao da compreensão é o da Aliança entre o saber e o ser. Uma utopia realizável, um caminho para a Paz.

Referências bibliográficas

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3. WEIL, Pierre; LELOUP, J-Y; CREMA, R. Normose, a patologia da normalidade. Campinas: Verus, 2003.
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10. GROF, S. Psicologia do Futuro. Niterói: Heresis, 2000.
11. _________ A mente holotrópica. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
12. WILBER, K. O espectro da consciência. São Paulo: Cultrix, 1990.
13. _________ A visão integral. São Paulo: Cultrix, 2009.
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