É vasto o mistério e o alcance do Encontro. Nele somos concebidos, nascemos, existimos e para ele partimos, na passagem que denominamos de morte. No início, no meio e no fim é o Encontro.

No entanto, no que diz respeito à família humana, o âmago da crise que vivemos se traduz pelo desencontro, que se evidencia pela carência e mesmo a falência da escuta e do cuidado consigo mesmo, com o outro, com a comunidade e com a natureza. Em função de um paradigma materialista e mecanicista decadente, ainda dominante, o sujeito reduziu-se e degenerou-se em objeto, o que significa o naufrágio da subjetividade e da intersubjetividade, da substância anímica que se encontra no fundamento mesmo da autêntica possibilidade do Encontro. Transmutar a megacrise que vivemos em ocasião para um novo aprender a aprender que nos conduza, como sonhava Pierre Weil, do amor ao poder para o poder do amor, numa época não apenas de mudança, mas numa mudança de época, eis o imenso e incontornável desafio evolutivo à nossa frente.

Segundo o criador e presidente do Clube de Budapeste, Ervin Laszlo[1], filósofo da ciência e cientista da evolução e dos sistemas, no seu livro O Ponto do Caos, vivemos um momento crucial histórico de macrotransição, precisamente numa janela de decisão e na borda de um precipício, que nos levará ou a um colapso de proporções fatídicas ou a um salto quântico de consciência. Para este pesquisador integral, trata-se de um processo sistêmico, além do determinismo e da aleatoriedade, que poderá ser dirigido intencional e conscientemente. Trata-se de evitar o fracasso da espécie homo sapiens demens, na denominação de Edgar Morin[2], filósofo da complexidade que afirma sobre o nosso momento histórico: degenerar ou regenerar!

Apenas faço um reparo nas visões lúcidas e visionárias destes dois ícones da ciência e da filosofia contemporâneas: substituo o ou pelo e pois, tudo indica que transcorre, ao mesmo tempo e em pleno curso, um processo de morte e também de renascimento civilizacional. Das cinzas do obsoleto e dos escombros do insustentável ergue-se já o mutante da nova consciência para a tarefa de reconstrução do existir humano. E o Encontro há de ser o seu baluarte, o seu abre caminho.

Demolição e reconstrução

 Gosto de relembrar uma verdadeira parábola, que fala de um velho rabino que reuniu  seu povo numa grande assembleia e anunciou: “Tenho uma boa e uma má notícia para vocês. A má é que o teto da nossa sinagoga está para desmoronar, e a obra custará milhares de dólares. A boa é que nós temos os recursos para empreender a reconstrução”. Depois do sobressalto inicial, todos suspiraram de alívio com o feliz anúncio final. Então, alguém indagou: “Onde estão os recursos, senhor?” E o sábio ancião sentenciou: “Nos bolsos de vocês!”

Esta provocativa e elucidativa estória dos sábios anciãos aponta para o coração dos tempos caóticos e criativos que estamos atravessando. A má notícia fala da demo-lição, do egocentrismo, da fragmentação e desvinculação, do esquecimento do essencial. Sobretudo por sentir-se desencontrado, separado e alienado do todo, o ser humano tornou-se um inigualável predador do semelhante, da  comum-unidade e da natureza, a tal ponto que o teto de nossa casa comum já está desabando sobre as nossas cabeças, para quem é capaz de ver o óbvio. Neste sentido, presenciamos a convergência de advertências de antigas mensagens proféticas com textos científicos de ponta sobre os cenários contemporâneos. A boa notícia é que nós temos os meios para empreender uma reconstrução, extraindo um novo cosmo do velho caos. Estes recursos podem ser encontrados não apenas em nossos bolsos materiais, mas sobretudo no terreno da interioridade: em nossas almas, em nossos corações, em nossas consciências.

A terapia é uma arte do encontro e do cuidado a partir de uma escuta equânime das más e das boas notícias. Sem nenhum inconsequente otimismo – acolher apenas a boa notícia – e nenhum irresponsável pessimismo – considerar apenas a má notícia. A virtude necessária para transcendermos esta polaridade é a confiança, fiar com, tecer consigo, com o outro, com os outros, com o meio ambiente e com o próprio Mistério o Nós da relação, os laços do Encontro. Para que a flor brote da dor, o lótus do luto e a Nova Jerusalém, cidadela da paz, dos escombros de uma Babilônia insustentável e decadente.

Nunca faltaram crises em momentos históricos anteriores. O inusitado de nossa atual situação é que a humanidade possui uma tecnociência que utilizada de forma irresponsável, sem visão, sem consciência e sem ética, o que infelizmente tem ocorrido sistematicamente, poderá destruir a si mesma e a própria biosfera, nosso lar de coexistência. Padecemos de uma hipertrofia do hemisfério racional-tecnológico e de uma atrofia do ser interior, da subjetividade, da intersubjetividade e do hemisfério consciencial, enfermidade provocada por um desequilíbrio de dimensões que podem ser fatídicas.

Talvez o mais importante a ser enfatizado é que há rumores confiantes de uma resposta emergente e responsável do potencial de inteligência da espécie. É possível uma Nova Renascença se aceitarmos o desafio criativo e evolutivo, inerente à própria crise. Se ousarmos a via da religação da ciência com a consciência, da razão com o coração, da efetividade com a afetividade, do profano e o sagrado, alquimia redentora do Encontro.

Do túmulo e berço da crisálida gosto de confiar que uma borboleta está nascendo, bela e delicada, para um voo de reencantamento do mundo e de reconstrução do projeto humano.

Um Pacto de Aliança: ciência e consciência

 No alvorecer do terceiro milênio um novo aprender a aprender, um novo paradigma, com suave rigor desponta nos horizontes humanos. Finalmente, estamos transcendendo o que tenho denominado de pacto do século XVII. Nessa ocasião o racionalismo científico, que emergia com a natural fragilidade de tudo o que nasce, teve que realizar um acordo, tácito e tático, com o poder religioso da Igreja, na época tirânico e dominante, cujo aspecto mais sombrio agia pelo nome de “Santa” Inquisição.

Neste pacto de sobrevivência o domínio da ciência precisou circunscrever-se ao aspecto natural e material, que é suscetível de investigação racional, de quantificação, de mensuração, de reprodução e de controle de variáveis. Enquanto à Igreja caberia supostamente a tarefa clássica de cuidar da alma, da consciência, da interioridade e do Espírito. Assim foi introduzida, no âmago da nascente Idade Moderna, uma dissociação entre a objetividade e a subjetividade, entre a efetividade e a afetividade, entre o princípio masculino e o feminino, entre a razão e o coração, entre a ciência e a consciência, entre o profano e o sagrado. Já que espiritualidade se traduz por amor compassivo, no século XVII o conhecimento se desconectou da dimensão amorosa e do cuidado solidário.

Naquele momento, a importância deste pacto foi o de romper uma simbiose obscurecedora, realizando uma compensação saudável iluminista de resgate da razão crítica, que estava sendo reprimida pelo jugo despótico do poder religioso. Infelizmente, pela força unilateral de um impulso dialético fomos levados ao outro extremo, sobretudo no século XIX, onde o império da razão, com o cientificismo, subjugou os demais códigos de apreensão do real, reprimindo os valores da subjetividade, reduzindo o sujeito a objeto e exorcizando a dimensão da essência.

Na primeira metade do dramático século XX, os terrores inimagináveis de duas guerras mundiais, tendo transcorrido apenas vinte e um anos entre o final da primeira e o início da segunda, dilacerou terrivelmente a humanidade e colocou fim na ilusão simplista de um inexorável progresso da religião positivista da física social de Auguste Comte. Sintomas escandalosos de um esgotamento paradigmático ocidental, do mito do poder dogmático de uma razão destituída de coração, que nos conduziu ao que alguns denominam de  o horror da história.

Numa telegráfica síntese, nos momentos obscuros medievais o espírito científico era reprimido em nome de algo que, confusamente, era chamado de Deus. Mudou-se a polaridade e nos momentos também obscuros da modernidade, a dimensão subjetiva e a espiritualidade passaram a ser reprimidas em nome de algo que, confusamente, tem sido chamada de ciência.

 Assim é que urge a vital tarefa de atualizar os nossos ritos segundo um novo mito transdisciplinar holístico, ecológico e inclusivo, centrado na dinâmica do todo-e-as-suas-partes, na dialogicidade da ciência com a filosofia, a arte e a espiritualidade, centrado na meta da consciência de inteireza. Trata-se do imperativo heurístico de uma aliança entre o positivo do paradigma medieval – o sagrado – e o positivo da modernidade – a tecnociência: uma nova aliança entre o monastério e a academia, entre o oráculo e o laboratório. Verdadeira conspiração do Encontro.

Podemos compreender a transdisciplinaridade como um novo pacto, que propõe a convergência e complementaridade entre a ciência moderna e a tradição sapiencial, objetivando a compreensão do mundo através do resgate da unidade do conhecimento ou, melhor dizendo, de uma integração entre o saber e o ser. Esta abordagem, segundo Basarab Nicolescu[3], se alicerça em três axiomas interligados. Primeiro, na dinâmica advinda da ação simultânea de múltiplos níveis de Realidade, transcendendo a noção cientificista de uma única realidade. Segundo, no decorrente paradigma da complexidade, que postula sistemas abertos e religados de saberes numa ecologia de disciplinas, realiando texto ao contexto em um horizonte de ambivalência e de incerteza, postulado sobretudo por Edgar Morin. Finalmente, na lógica aberta do terceiro incluído, proposta por Stéphane Lupasco, que transcende o princípio da não contradição da lógica formal aristotélica e supera a estreiteza da dualidade cartesiana, uma dinâmica antagônica aberta ao contraditório e ao paradoxal, onde os opostos coexistem.

Enfim, trata-se de um pacto dialógico e de conexão, uma conspiração e metanoia da consciência tornada possível pela integração entre o método analítico e o sintético, entre a dimensão existencial e a essencial, entre a ciência contemporânea e a sabedoria milenar, pela via imperativa do Encontro.

 Além da Normose

 Na perspectiva holocentrada, é imperativo denunciar o que Jean-Yves Leloup, Pierre Weil e este autor denominamos de normose, uma patologia da normalidade[4], que é por um lado caracterizada pelo conformismo e adaptação a um contexto mórbido em grande escala.  Quando um sistema apresenta-se num estado dominante de desequilíbrio, de insanidade e de corrupção, com evidentes sintomas denunciando anomalias na ecologia individual, social e ambiental, então a normalidade se degenera numa grave e insidiosa enfermidade, mantenedora do status quo.

Por outro lado, a normose também se define pela estagnação da dinâmica evolutiva inerente à realidade humana. Somos seres incompletos e, neste sentido, carentes de um aperfeiçoamento através do investimento nas dimensões não apenas físicas e materiais; também nos domínios da subjetividade, da alma profunda e da consciência. Neste sentido a normose se expressa pelos sintomas de um estrangulamento fetal provocados pela inércia do processo evolutivo, que sepulta o vir-a-ser humano rumo a um saudável florescimento.

Há mais de dois milênios que Confúcio apontava para o fato do inacabamento humano, considerando o ideal da nobreza como o fruto de um processo de aperfeiçoamento educacional. Em outras palavras, nós não nascemos humanos; nós nos fazemos humanos, através do investimento em trilhas singulares de individuação, da periferia do ego rumo à centralidade do Self, como propôs Carl Gustav Jung[5], na sua abordagem de uma psicologia da maturidade que postula o processo de individuação. Neste sentido, é imprescindível o resgate de uma pedagogia e terapia iniciáticas, que possam facilitar, através de uma via interior e integrativa, que o humano se desvele a si mesmo, habitando o instante e se desenvolvendo a partir da semente inerente ao seu Ser. Nesta visão aberta e inclusiva, que concilia a altitude com a profundidade, o sagrado com o profano, o absoluto com o relativo, o estado real de saúde plena é quando a essência transparece na existência, como afirma Graf-Durkheim[6], criador da terapia iniciática.

Quando a normose prevalece, saúde autêntica se expressa por meio de um desajustamento saudável, de uma revolta lúcida e, às vezes, de uma angústia sóbria. Uma pessoa realmente saudável é a que transgride os viciados e previsíveis trilhos normóticos e ousa desbravar trilhas virgens, que serão inventadas pelos próprios passos, como nos atestam as pegadas simbólicas dos heróis e heroínas dos mitos universais.[7]

Na minha visão, não é possível compreender a abordagem transdisciplinar holística, que nos convoca a uma conversão paradigmática que possa abrigar a vastidão, profundidade e altitude do projeto humano, sem em algum grau superarmos esta anomalia da pequenez e mediocridade.

No campo da saúde além da normose, no território transdisciplinar, com a superação da dicotomia dilacerante e perversa entre a matéria e espírito, entre o relativo e o absoluto, entre o saber e o ser, entre o conhecimento e o amor, ousamos considerar como testemunhos paradigmáticos de saúde integral e de excelência total seres humanos despertos e iluminados, como Cristo e Buda, ícones ou arquétipos supremos, do Ocidente e do Oriente, de educadores e de terapeutas no estado de plenitude e de integridade total. Se eles não constam em nossos manuais de psicologia, de psiquiatria, de pedagogia, de administração e outros, deve-se simplesmente à estreiteza de uma alienação normótica, que nos apequena e sabota a visão do alcance do potencial de inteireza e plenitude decorrente do investimento na autorrealização humana.

Integração: Quinta Força em Terapia

 Para Abraham Maslow[8], sucederam-se quatro revoluções ou forças, no desenvolvimento da ciência psíquica ocidental. A primeira e a segunda foram praticamente contemporâneas: a psicanálise de Freud, que desvelou o inconsciente, postulando um determinismo psíquico, e o behaviorismo, inspirado em Pavlov, que pesquisa a conduta observável, fundamentado em um determinismo comportamental. A terceira força foi o movimento humanista, que colocou sua ênfase no potencial de autodesenvolvimento e na inclinação para a saúde do ser humano, transcendendo a visão reducionista e centrada meramente nas deficiências e nos mecanismos reflexológicos. Segundo Maslow, um dos seus mais notáveis representantes – juntamente com Carl Rogers, Rollo May, Eric Berne, Stanley Krippner, entre outros -, esta seria uma força de transição para uma quarta força, transumana, centrada no cosmo: a abordagem transpessoal, enfatizando os estados ampliados e transcendentes de consciência.

Considero que o movimento transpessoal foi compensatório, após um século de uma  psicologia e terapia centradas no fator exclusivamente pessoal. Este foi um movimento também de transição, para uma quinta força, que transcende a polaridade pessoal-transpessoal, com o mesmo rigor investigando e conjugando as dimensões do aquém do ego, com o ego e o além do ego,  aliando as metáforas organísmicas das raízes, do tronco e da copa, centrada na consciência de inteireza: a abordagem transdisciplinar holística. Trata-se de uma visão inclusiva, que supera os reducionismos e integra todas as forças, considerando-as na ordem da complementaridade integrativa e não do antagonismo excludente.

Como indica o inspirador arquétipo de Noé, necessitamos fazer de nossas estratégias teóricas e pragmáticas uma balsa e nela colocar todos os pares de opostos, para a travessia do dilúvio do colossal desafio crítico contemporâneo. Necessitamos de uma escuta aberta para toda a pluralidade e vastidão do fenômeno humano, que concilia o pré-pessoal, o pessoal e o transpessoal; o infra-humano e o transumano no coração aberto do Humano. É descendo e assumindo o mais profundo dos abismos de nossa humanidade que poderemos reencontrar a nossa identidade transcendente, a morada na mansão do Infinito Eterno, enraizada no solo relativo do finito, inexorável paradoxo da inteireza.

Como fruto das reflexões do autor com o Pierre Weil, pioneiro da transpessoal no Brasil, introdutor da sua cátedra na Universidade Federal de Minas Gerais, Weil[9] concordou com a emergência de uma quinta força em terapia, o que explicitou no seu livro, Lágrimas de Compaixão, quando discorria sobre a importância do I Congresso Holístico Internacional – I CHI (1987), evento redefinidor, de natureza iniciática, que juntos realizamos em Brasília: “Eu não me dava conta, nesta época, que com essa decisão a gente estava criando a Quinta Revolução na Psicologia. Na realidade, estávamos lançando as sementes para apoiar o movimento transdisciplinar de Basarab Nicolescu e da UNESCO.”  Em outro livro, A Morte da Morte[10], Pierre Weil distingue quatro etapas fundamentais na história da psicologia transpessoal: a mística, das milenares Tradições sapienciais do Oriente e do Ocidente; a dos precursores, com destaque para Willian James, Richard Bucke, C. G. Jung, juntamente com filósofos e mestres como Kierkegaard, Bergson, Simone Weil, J. Boehme, Chardin, Guénon, Gurdjieff, Mircea Eliade, Krishnamurti e Sri Aurobindo; a transpessoal, com A. Maslow, Anthony Sutich, James Fadiman, Viktor Frankl e Stanislav Grof; e a holística, sobre a qual afirma que “pode ser considerada, sem dúvida nenhuma, a quinta revolução na psicologia e uma revolução de paradigmas na ciência, seguindo a expressão de Kuhn.”

Numa palestra sobre saúde integral, que encerrou a conferência internacional, A Ciência e o Primado da Consciência, na Universidade de Lisboa (1998), com a presença do psiquiatra presidente da Associação Internacional de Transpessoal, Stanislav Grof, do biólogo Rupert Sheldrake, do físico Amit Goswami e do neurocientista Karl Pribram, coube-me a oportunidade de sustentar a existência de uma quinta força em terapia, como um movimento vigoroso e paradigmático de integração entre os aspectos pré-pessoal com o pessoal e o transpessoal de uma perspectiva centrada na totalidade do fenômeno humano, na palestra Saúde Integral: o resgate da consciência da inteireza[11].

Força de integração, escuta abrangente, visão inclusiva, abrigo dos opostos que se complementam, eis outro aspecto da potência amplificadora do Encontro.

Um Movimento do Cuidado Integral

Como colaborador de Jean-Yves Leloup, coube a este autor a grata tarefa de introduzir e durante vinte anos coordenar no Brasil, e também na Argentina, no Equador e em Portugal, o Colégio Internacional dos Terapeutas – CIT[12]. A mais nobre das suas funções creio ter sido a de ressignificar o conceito de terapeuta e da atitude terapêutica.

No seu livro, Os Mutantes[13], Pierre Weil afirma: Há cerca de vinte anos impressionei-me muito com a figura de Fílon de Alexandria e com sua descrição da Escola Judaica dos Terapeutas que, entre outros (cuidados), curavam com as mãos, sendo que a maior dessas escolas se encontrava no Egito. Ora, é ao Egito que Jesus foi levado pelos seus pais para fugir da perseguição do governador romano. E Jesus curava com as mãos. Nasceu então a hipótese de que Jesus teria sido iniciado pela escola dos terapeutas e de que ele era um rabi terapeuta. Trocando ideias com Jean-Yves Leloup, este confessou-me que tivera a mesma ideia e resolveu, posteriormente, não somente retraduzir para o francês, em edição comentada, o livro Os terapeutas, de Fílon de Alexandria, mas ainda criar na Unipaz-Brasil a primeira unidade do Colégio Internacional dos Terapeutas.

É muito significativo que Leloup[14], buscando a origem da palavra terapeuta, tenha se deparado com uma tradição judaica denominada de Terapeutas, da qual Fílon[15], eminente hermeneuta precursor de Orígenes, eleva um sublime elogio. Autênticos filósofos, amantes da sabedoria, cujos templos também eram hospitais, escolas e jardins, para estes sacerdotes do deserto terapeuta é alguém que cuida, para que a Grande Vida possa curar. Um cuidar integral, sobretudo, daquilo que não é doente em nós, pois é a partir da saúde que uma dinâmica curativa e evolutiva é posta em marcha. Postulavam, assim, a ousadia de uma terapia essencialmente preventiva, que busca levar a pessoa a um estado crônico de saúde.

Para cuidar, o primeiro mandamento ou exercício é o da escuta. Uma escuta que não é só audição; que envolve também a interpretação. Como afirmam os antigos rabinos, cada frase bíblica é suscetível de 72 interpretações – na gnose islâmica seriam 99, que é o número de nomes que damos ao Mistério além de todos os nomes. O mesmo podemos afirmar com relação ao sintoma, ao sonho e à crise existencial. Eis um cuidado hermenêutico com valor de um tratamento medicinal contra o flagelo do fundamentalismo e do fanatismo, que expressam o naufrágio da interpretação – circunscrição na espuma do literal, tentativa vã e alienada de buscar explicar e compreender o todo a partir de apenas uma minúscula parte, falácia perigosa de absolutizar o relativo.

A atitude terapêutica, portanto, é a que cuida através de uma escuta inclusiva, aberta à uma arte de interpretação plural. Implica também numa visão de respeito ao sujeito, que denominamos de    ética da bênção. Abençoar é bem olhar e bem dizer: jamais reduzir o outro a um rótulo, ao seu menor, aos seus traumas.

Ninguém é doente; a pessoa está doente. A enfermidade é um momento de uma passagem; o sujeito é maior do que os seus males, os seus sofrimentos, os seus traumas. A porta na qual batemos é a que se abrirá, naturalmente. Se focarmos apenas no disfuncional e nas mazelas estas, sem dúvida, se apresentarão. Quando focamos no outro o seu estatuto de realeza do sujeito, é também esta nobreza potencial que se atualizará. Não se trata de ser complacente, já que os sintomas são também devidamente cuidados, reconhecidos, escutados e interpretados, para que sejam superados. Trata-se de colocar a primazia no essencial, na dimensão do Ser, a partir da qual o existencial é igualmente cuidado e, no tempo justo, sanado.

O terapeuta também é alguém que é capaz de sorrir para o outro. A menor distância entre duas pessoas é o riso e a lágrima. O sorriso, entretanto, não tem oposto, e brota de um esquecido Evangelho da Graça, que anuncia que tudo passa, exceto o amor. Talvez sorrir seja a forma mais simples de abençoar, de aliar-se à assinatura da Vida no semblante único do indivíduo que encontramos, não importa o quanto tenha sido dilacerado e machucado pela existência.

Interessa constatar que, nesta abordagem, a palavra terapeuta não pertence a nenhuma profissão particular, a nenhum ofício institucionalizado, felizmente escapando de todos os corporativismos. Ela nos remete a uma tradição que Fílon denominava de contemplativos, a uma Ordem de sacerdotes que eram também filósofos, psicólogos, educadores e jardineiros, que cuidavam para que o jardim da plenitude humano floresça, fecundado pelo Sopro da Vida.

A partir de uma visão de ecologia profunda, e de uma definição de saúde como um processo dinâmico de bem-estar psicossomático, social, ambiental e espiritual, postulada pela Organização Mundial de Saúde, no CIT-Brasil três categorias de terapeutas são reconhecidas: a clínica, a social e a ambiental. A primeira é reservada aos profissionais clínicos habilitados, como médicos, psiquiatras e psicólogos; a segunda, aos profissionais que cuidam do corpo social, como educadores, empresários, engenheiros, arquitetos, artistas, políticos, cientistas, sacerdotes…; a terceira diz respeito aos cuidadores do meio-ambiente, como biólogos, ecólogos, etólogos, engenheiros florestais, entre outros. A tarefa de ser agente de saúde, portanto, é estendida a todo ser humano que se importa com o bem-estar de si, de todos e de tudo, assumindo a responsabilidade de cuidar, cuidar-se.

O essencial que alia os participantes do CIT, como uma inspiração que transcende a instituição, são dez orientações maiores concebidas por Jean-Yves Leloup, no texto fundante do nosso Colégio:

  1. O postulado antropológico, uma visão da inteireza humana que concilia o existencial com o essencial, o relativo com o absoluto, o ego com o Self.
  2. A ética da bênção, que restitui a pessoa na sua condição de Sujeito.
  3. O silêncio, espaço de vacuidade fértil, a ser cultivado como uma fonte de toda palavra justa e de todo gesto consciente e cuidador.
  4. O estudo, analítico e sintético, dos textos da ciência e filosofia contemporâneas juntamente com os das arte e da tradição sapiencial.
  5. Gratuidade, o serviço, viço do ser, que emana da consciência do Dom inerente ao âmago do Ser, em prol do individuo, da sociedade e da natureza.
  6. Reciclagem, exercício de renovação através de periódicos retiros e vivências transculturais.
  7. Reconhecimento, um compromisso de cuidar-se com outro terapeuta, na consciência do inacabamento e como profilaxia à inflação do ego.
  8. Anamnese essencial, o registro das vivências numinosas, na vigília e no sonho, que evidenciam o toque do sagrado no cotidiano existir.
  9. Despertar da Presença, por meio da conexão meditativa com o Instante, para habilitar-nos à arte essencial do Agora.
  10. Fraternidade, abrir-se a um ritmo de contato comunitário, já que ninguém ensina ninguém a cuidar e ninguém aprende a cuidar sozinho; nós aprendemos esta grande arte no Encontro.

O Acolhimento de um novo ou de uma nova terapeuta ocorre através de um ritual iniciático, simples e profundo, no qual a pessoa recebe uma especial bênção dos antigos e novos terapeutas e um manto, para envolver-se nos momentos íntimos da prática meditativa no cotidiano. O simbólico manto representa a conexão, com a qualidade que esta consciência confere, deste ou desta terapeuta particular como um elo de uma corrente que remonta a Ordem milenar dos Terapeutas de Alexandria.

Encontro, o pressuposto do Cuidado

 A partir da minha prática clínica e educacional tenho afirmado, há mais de duas décadas, que ninguém transforma ninguém e ninguém se transforma sozinho; que ninguém liberta ninguém e ninguém se liberta sozinho: nós nos transformamos e nos libertamos no Encontro.

O pressuposto e origem do cuidado é o Encontro. O Encontro é a mãe do cuidado e o terapeuta um encontrador. Escrevo este termo com inicial maiúscula, para diferenciá-lo de um encontro restrito de paradigmas circunscritos a um único nível de realidade, com acesso a um exclusivo estado de consciência. Um dos objetivos principais desta obra é a de ressignificar o conceito do Encontro, à luz de uma visão e prática transdisciplinares, que faça jus e honre a consciência da inteireza do fenômeno humano.

Este conceito ampliado e inclusivo do Encontro cavou-me de forma progressiva, na minha própria trilha de individuação, na oficina vasta da alma. Travei contato – pessoalmente ou através de suas obras – e inspirei-me em muitos mestres do encontro como Moreno, Buber, Rogers, Perls, Berne, Toro e Freire. O destino maior conduziu-me à uma profunda aliança com o Pierre Weil, com quem pude desbravar fronteiras mais amplas e sutis relacionais, na direção do que denomino de Encontro transdisciplinar. A resenha dessa aventura será resumida no próximo capítulo.

Como já refletimos, o primeiro postulado da transdisciplinaridade é o da existência de diversos níveis de percepção da realidade, cada qual irredutível com relação aos demais, com a sua lógica singular, suas leis e dinâmicas próprias e os seus labirintos e habitantes inerentes. Esta consideração instaura, naturalmente, o segundo postulado da complexidade, pois nada pode ser compreendido e muito menos esgotado de forma simplista e superficial, a partir de um único nível de realidade. O postulado do terceiro incluído nos remete ao universo paradoxal onde o profano e o sagrado criativamente se abraçam. Assim, o Encontro transcorre neste amplexo de acolhimento inclusivo de estados diversos e complementares de consciência, acessados através de portais ampliados de percepção.

Falando de um outro modo, o Encontro acontece na dinâmica aberta e simultânea das dimensões pré-pessoal, pessoal e transpessoal, implicando na convergência e sinergia entre a comunicação e a transcomunicação: eis a síntese de uma vasta ressignificação, focalizada em meu livro, O Poder do Encontro: Origem do Cuidado.

Nada há de novo sob o sol, exceto o Agora, templo do Encontro, kairós da renovação. Que não tardem os raios translúcidos de uma Manhã do Encontro!

[1] LASZLO, Ervin. O Ponto do Caos. São Paulo: Cultrix, 2011.

[2] MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Presente, In: Moraes, Maria Cândida e Almeida, Maria da Conceição (Org.), Os Sete Saberes – por uma educação transformadora. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2012.

[3] NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999.

[4] WEIL, Pierre; LELOUP, Jean-Yves; CREMA, Roberto. Normose, a patologia da normalidade. Campinas: Verus, 2003; Petrópolis: Vozes, 2011.

[5] JUNG, Carl Gustav e WILHELM, Richard. O Segredo da Flor de Ouro. Petrópolis: Vozes, 1983.

[6] GRAF-DURCKHEIM, Karlfried. L’Homme et sa double origine. Paris: Albin Michel, 1996.

[7] CAMPBELL, Joseph, O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1988.

[8] MASLOW, Abraham H. Introdução à Psicologia do Ser. Rio de Janeiro: Eldorado, s.d.

[9] WEIL, Pierre. Lágrimas de Compaixão. São Paulo: Pensamento, 2000.

[10] WEIL, Pierre. A Morte da Morte – uma abordagem transpessoal. São Paulo: Gente, 1995.

[11] CREMA, Roberto. Saúde Integral – o resgate da consciência da inteireza. In: A Ciência e o Primado da Consciência – Conferência internacional, Universidade de Lisboa – Programa: 22-24 de abril, 1998.

[12] LELOUP, J-Y; CREMA, R. (Coord.) Dimensões do Cuidar – Uma visão integral. Petrópolis: Vozes, 2015.

[13] WEIL, Pierre. Os Mutantes – Uma nova humanidade para um novo milênio. Campinas: Verus, 2003.

[14] LELOUP, Jean-Yves. Cuidar do Ser – Fílon e os Terapeutas de  Alexandria. Petrópolis: Vozes, 1996.

[15] FÍLON de Alexandria. Obras Completas. Buenos Aires: Acervo Cultural, 1975.