Vivemos uma transição consciencial acompanhada de uma aceleração vertiginosa de processos degenerativos e regenerativos sem antecedentes na história conhecida. Não é difícil constatar que a humanidade se encontra em um ponto de bifurcação entre a possibilidade de um colapso de dimensão planetária e um salto qualitativo evolutivo rumo a uma nova forma mais sustentável de estar-e-de-ser-no-mundo.
A denominada COVID-19 foi, na realidade, a triste crônica de uma pandemia há décadas anunciada por pesquisadores da ecologia de ponta, que denunciavam os efeitos catastróficos da depredação ambiental, praticada de forma sistemática por uma certa alienação humana. Sua emergência se fez, subitamente, no final de 2019, como produto de um processo longo, discreto e silencioso. Somos modelados para o espetáculo dos acontecimentos e, infelizmente, quase sempre nos escapa a invisibilidade determinante do processo. Em 1992, por ocasião da célebre Conferência sobre Meio Ambiente, mais de 1.700 cientistas, alguns laureados com o Prêmio Nobel, assinaram uma carta denominada de ‘Advertência dos Cientistas do Mundo à Humanidade’, que pode assim ser resumida: A humanidade encontra-se em rota de colisão com a Natureza. O mais grave é que, desde então, a situação segue se degradando aceleradamente, com sintomas dramáticos e bastante perceptíveis nas esferas da ecologia individual, social e ambiental.
Tive a grata oportunidade de travar contato com Manfred Max-Neef[2], notável ambientalista e economista chileno, Prêmio Nobel Alternativo, por ocasião de um congresso holístico internacional transcorrido em 1989 em Mendonza, Argentina. Neste encontro ele nos dizia que, desde criança, costumava se perguntar sobre o que caracteriza a espécie humana perante as demais. Logo concluiu que não seria a linguagem, nem a inteligência, nem a cultura, nem mesmo o humor. Então prosseguiu nesta perplexidade até quando, em um diálogo sobre este tema com o seu respeitável pai o ancião lhe disse: ‘Meu filho, não será a estupidez?’ Max-Neef confessou que repentinamente acendeu-se dentro dele uma luz, que o converteu no primeiro ‘estupidólogo’.
De fato, a estupidologia é uma ciência que precisamos estudar para compreender o momento que estamos atravessando. Ela se diferencia da imbecilidade, que é ingênua e inofensiva, pelo fato de revestir-se de racionalidade: uma pessoa pode ser extremamente racional, com muitos diplomas, vasta erudição e, ao mesmo tempo, sumamente estúpida, como alguém que, sentado no galho de uma árvore, faz um discurso desenvolvimentista sofisticado com elegantes gráficos e rigorosa estatística enquanto serra, precisamente, o galho no qual se encontra apoiado. Segundo Frederick Perls, criador da Gestalt Terapia, Einstein afirmava que apenas duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. E o célebre cientista ironicamente acrescentava que, com relação ao universo, ele ainda não tinha certeza…
Entretanto, admirando suas lúcidas e lúdicas sabedorias, ouso discordar de Max-Neef e de Einstein. Sustento que a estupidez não caracteriza a espécie humana e, sim, representa a triste digital de uma doença perversa, insidiosa e silenciosa que Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e eu denominamos de normose, a patologia da normalidade[3]. Concordo com Confúcio que sustentava, há cerca de dois milênios e meio, que o que distingue o ser humano de todas as outras espécies é o inacabamento, a incompletude. Nós não nascemos humanos, nós nos fazemos humanos, através de investimentos sistemáticos no imenso potencial inerente à nossa espécie. Sem dúvida, a estupidez é uma das características básicas da normose, a patologia da pequenez e mediocridade, um tema que considero imprescindível para a compreensão e postulação de uma nova normalidade, para que ela não corra o risco de se perverter em uma velha normose.
Definimos a normose como um conjunto de normas, comportamentos, atitudes e hábitos dotados de consenso social e patogênicos em diversos graus de gravidade, que conduz a doenças, sofrimentos, à infelicidade e, mesmo, à morte. Na minha compreensão são três os seus fundamentos. O primeiro é o sistêmico: nem sempre a normose existiu e nem sempre existirá. Esta anomalia da normalidade surge quando o sistema no qual vivemos e convivemos encontra-se dominantemente desequilibrado, violento, desumanizado, com o predomínio da falta de visão e de escuta, da desigualdade crônica, do racismo estrutural, da corrupção endêmica, da anemia ética e crescente violência contra o indivíduo, a sociedade e a natureza. Neste caso, que certamente é o nosso, a normalidade se perverte em estagnação adaptativa a um contexto em grande medida enfermo, ou seja, torna-se uma patologia normótica. Nesta triste situação a pessoa autenticamente saudável apresenta sinais de um desajustamento consciente, de uma indignação justa, de uma angústia sóbria. Há normoses gerais, a exemplo da fantasia da separatividade, do patriarcalismo, do ecocídio, da exclusão, do racismo, do egocentrismo, da desigualdade e da guerra. Também há normoses específicas, como a do consumismo, da corrupção, do cientificismo, da alienação digital, da fofoca e fake news, da educação reducionista, da superespecialização, da invisibilidade social, do fundamentalismo, entre muitas outras na área econômica, política, artística e religiosa.
O segundo fundamento é o evolutivo: a normose pode ser compreendida como uma estagnação evolutiva, o naufrágio da alteridade, o fracasso iniciático. Trata-se de uma paralisação daquilo que deveria ser processo, uma força de inércia que impede o autodesenvolvimento causada pela ausência ou insuficiência de investimento no potencial da autorrealização humana, sobretudo na esfera da interioridade, da psique e da consciência. Após a emergência do racionalismo materialista e tecnicista que caracterizou o advento da modernidade no Século XVII houve um investimento unilateral restrito ao mundo da matéria, expresso por uma sofisticada tecnociência, que nos trouxe enormes e inegáveis benefícios. Entretanto, não houve o correspondente e imprescindível investimento no mundo da subjetividade, da intersubjetividade e da consciência de onde jorram os valores perenes. Sabemos muito bem dos riscos envolvidos no triunfo de uma tecnologia poderosa e destituída de visão, de alma e de ética orientadora. É preciso ressaltar que o ser humano introduziu uma outra ordem de complexidade na dinâmica evolucionária em nosso planeta, que passou a implicar uma qualidade intencional, consciente e voluntária que transcende as leis biológicas naturais, originalidade que Henri Bergson[4] denominava de processo evolutivo vital e livre, Edgar Morin[5] de aspecto meta-natural do humano, Basarab Nicolescu[6] de autotranscedência, Ervin Laszlo[7] de evolução intensiva e interior. Além do acaso, da necessidade, das mutações genéticas aleatórias e do jogo da seleção natural darwiniana aplicadas ao campo da natureza, a evolução humana é de ordem cultural, ética e transpessoal, exigindo uma intenção consciente e intenso cultivo sobre si mesmo, que C. G. Jung[8] postulava como processo de individuação, uma peregrinação que, de forma mandálica e labiríntica, do mais superficial da persona egoica possa nos conduzir à centralidade do Self, arquétipo de ordem e de orientação. Trata-se de uma característica ímpar do ser humano sustentada pelas tradições iniciáticas milenares, a exemplo das obras notáveis de Plotino, de J. Böhme, de Swedenborg, de G. I. Gurdjieff, de Sri Aurobindo, e por significativas cartografias da psicologia transpessoal contemporânea, como as de Stanislav Grof, Ken Wilber, Roberto Assagioli, Viktor Frankl, Stanley Krippner, Karlfried Graf-Dürckheim, Pierre Weil, entre outras. O grande desafio é o de transgredir os trilhos normóticos conhecidos, confortáveis e previsíveis, rumo às trilhas evolutivas, inusitadas e inexistentes, que teremos que inventar com nossos próprios passos.
O terceiro fundamento da normose é o paradigmático, tal como concebido, no seu sentido mais vasto, por Thomas Kuhn[9]. Neste caso, a normose surge quando o paradigma que ainda prevalece encontra-se esgotado e até mesmo esclerosado no seu potencial criativo, sendo que o movimento renovador e criativo que naturalmente emerge é postulado por um grupo minoritário. Como afirmava Max Planck, segundo Kuhn, uma nova verdade científica não triunfa pelo convencimento dos seus oponentes que, dotados das virtudes de abertura e de humildade renunciam às suas velhas certezas, senão porque, simplesmente, eles morrem. Assim, de enterro a enterro e de berço a berço uma nova geração se desenvolve, aberta e receptiva a um novo aprender a aprender. Encontra-se aqui em jogo a nobreza indicada por esta paradoxal e feliz expressão de Henry Thoreau[10] que afirmava que um justo, em uma multidão, representa a maioria de um. Em suma, a normose é uma patologia da pequenez que consiste em fazer pequeno o grande – de forma medíocre, automatizada, inconsciente, alienada e irresponsável. Enquanto saúde autêntica consiste na atitude de fazer grande o pequeno, introduzindo na ação, por menor que seja, os valores da consciência, da responsabilidade, do cuidado, da empatia e do amor compassivo.
Desde que a humanidade foi impactada, de forma inusitada e em uma escala sem precedentes na história, por um minúsculo e invisível vírus, muito se tem falado em uma nova normalidade pós pandemia, quando tivermos transposto o túnel escuro da crise global no qual nos encontramos. Neste sentido, considero relevante refletirmos sobre um documento de importância crucial no campo sinergético da interdependência e corresponsabilidade universal, A Carta da Terra[11], que tem o valor de um guia ético, fruto de um diálogo intercultural e internacional ocorrido durante a década de noventa do século passado. Inspirada nas recomendações do relatório Nosso Futuro comum da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, tendo como mentores e protagonistas principais Maurice Strong, secretário geral da Cúpula da Terra Rio-92, e o líder Mikhail Gorbachev, Presidente da Cruz Verde Internacional – que afirmava que somos uma só família, estamos em um mesmo barco, e não haverá uma segunda Arca de Noé, esta notável declaração foi construída após quase uma década de encontros transculturais, tendo sido ratificada e assumida pela UNESCO no ano 2000, no Palácio da Paz em Haia, capital da Holanda. Apesar da existência de uma natural diversidade a Carta da Terra declara que fazemos parte de uma comunidade terrestre de destino único e entrelaçado, e sustenta quatro princípios fundamentais na edificação de uma comunidade global sustentável, justa e pacífica: o de respeitar e cuidar da comunidade da vida; o da integridade ecológica; o da justiça social e econômica, e o da democracia pautada na não-violência e paz. A sua visionária conclusão intitulada de O Caminho Adiante, que antecedeu duas décadas a atual crise pandêmica, inicia afirmando que, como jamais antes na história humana, “o destino comum nos conclama a buscar um novo começo”.
Como indica a milenar tradição chinesa, a palavra crise tem dois significados: perigo e oportunidade. Com a força repentina de um tsunami a humanidade foi lançada em um oceano de incerteza, que frustrou totalmente agendas e planos, enclausurando-nos em um regime de isolamento, um retiro forçado com consequências nefastas e dramáticas sobretudo para o cinturão de pobreza que nos envolve, e para as pessoas despreparadas e pouco dotadas para a auto convivência inevitável e duradoura. Por outro lado, abriu-se também uma janela criativa para as pessoas privilegiadas em relação aos recursos básicos, e melhores preparadas psiquicamente, para a atualização de potenciais insuspeitados de cooperação, de valorização afetiva, de descoberta de valores como simplicidade, solidariedade, paciência, resiliência, convívio com a natureza e cultivo da paz interior. Na ecologia social foi impulsionado uma extraordinária expansão digital através da virtude do virtual que transcende todas as fronteiras, com o desvelamento do teletrabalho e múltiplos intercâmbios via online, o que desacelerou a existência. Na mesma medida a ecologia ambiental se beneficiou de uma queda abrupta da poluição, e os reinos da Natureza respiraram e se revitalizaram a olhos vistos.
Uma feliz surpresa a tecnociência nos brindou pela notável competência para, em um período bastante breve, disponibilizar diversos tipos de vacinas contra o coronavírus, graças também a um movimento cooperativo local e global. Entretanto, além do imprescindível processo de imunização em curso, necessitamos também buscar escutar, interpretar e compreender a mensagem implícita na pandemia, enquanto um sintoma que abrange as ecologias individual, social e ambiental. Caso contrário, provavelmente outras virão, com potencial destrutivo maior ainda. Na perspectiva de um cuidado integral suportado na abordagem transdisciplinar holística[12] sabemos que um sintoma não é ruim em si mesmo, pois geralmente representa um recado advindo da inteligência profunda organísmica que denuncia alguma contradição e desvio da rota correta, por parte de quem foi dele acometido. Em outras palavras, o sintoma é como um celular que toca e que precisamos atender para escutar e decifrar a sua mensagem, de modo a realmente compreendê-lo e superá-lo. No antigo Egito o abutre era considerado um pássaro sagrado, pois quando alguém está no deserto e essa ave necrófaga sobrevoa o céu acima de sua cabeça, isso indica que ele se desviou de seu caminho, e o pássaro aguarda a refeição. Nesse caso, se não faltar lucidez e prudência, a pessoa buscará se reorientar, consultando seus mapas e bússola para reencontrar o seu caminho. Por esta razão o abutre fazia parte do Panteão de Rá da tradição milenar egípcia.[13]
Em função da normose do imediatismo tecnicista infelizmente deixamos de escutar os sintomas, buscando apenas eliminá-los da forma mais rápida e eficiente possível, sem a escuta sensível e a arte hermenêutica, que são indispensáveis para a sua compreensão organísmica na base de uma autêntica cura. Neste caso, o celular metafórico segue tocando, inclusive através de outros números, demonstrando que a terapia realizou apenas uma reparação superficial, sem ter atingido as causas ou raízes do problema, o que impede também uma ação profilática. No final da sua existência Pasteur afirmava que a teoria do germe não é a correta e, sim, a teoria do terreno biológico. Com esta douta inspiração, podemos afirmar que o vírus não é nada, e que o terreno ou o hospedeiro é tudo. Conhecemos muito de vírus e desprezamos o terreno no qual ele se abriga. Não apenas o terreno biológico, senão também o psíquico, o noético e o existencial. Para fazer frente a esta pandemia precisamos escutar o que está implícito nesta palavra, Pã, o deus da mitologia grega protetor dos bosques e das florestas. Certamente, ele terá muito a nos dizer e colaborar para o que buscamos com o conceito de nova normalidade.
O consistente e oportuno Manifesto por uma Nova Normalidade do movimento latino-americano, constituído por mais de quatro mil signatários, entre os quais notáveis pesquisadores e representantes acadêmicos e de múltiplos organismos sociais, coautores desta obra, inicia com a lúcida afirmação de que a crise global que vivemos com a pandemia do vírus SARS CoV-2 constitui um sintoma de uma normalidade perversa e enferma, que se encontra na sua origem. Trata-se de uma perspectiva plenamente convergente com a abordagem da normose que apresentamos. Como também admoestava e indagava ao mesmo tempo Carl Gustav Jung[14], por muitos considerado o psiquiatra e psicoterapeuta mais importante do Século XX: Vivemos o kairós da transfiguração dos deuses, dos princípios e dos símbolos fundamentais. Será que o ser humano se dará conta de que ele é o fiel da balança?
Vivemos um período histórico que alguns denominam de antropoceno[15], no qual a ação humana e sua pegada ecológica exerce um impacto decisivo não apenas no destino da humanidade, senão da própria biosfera. Neste sentido, esta indagação de Jung segue mais atual e oportuna do que nunca. O ser humano tem sido o problema e pode ser, também, a solução, desde que assuma o desafio da autotransformação. Necessitamos criar uma massa crítica mínima de seres conscientes, responsáveis e capazes de um protagonismo criativo e proativo, para que seja possível um salto evolutivo que propicie o futuro das novas gerações, pois nada menos que isto se encontra em jogo na crise global, de natureza iniciática, que se encontra em pleno curso nesta terceira década do terceiro milênio.
O Manifesto por uma Nova Normalidade propõe um decálogo ousado e justo que transgride dez tipos de normoses, e apresenta as correspondentes propostas reparadoras de ações saudáveis e evolutivas, rumo a um novo começo, a saber:
- Normose do modelo economicista de acúmulo de capital e de crescimento a qualquer custo, para o paradigma da sustentabilidade, da redistribuição justa da riqueza e da qualidade de vida;
- Normose ambientalista da insana depredação da natureza e da perversa exploração humana, para o paradigma de respeito, de cuidado e de coparticipação na teia interconectada da biodiversidade planetária, com a valorização da vida;
- Normose do egocentrismo decorrente da ilusão da separatividade, para o paradigma da interdependência corresponsável e do desenvolvimento do potencial humano pautado na prática da simplicidade voluntária, do conforto essencial, da equidade e da fraternidade;
- Normose política do elitismo, para o paradigma da participação com o exercício de maior inclusão no processo decisório;
- Normose educacional da fragmentação do conhecimento, dos privilégios e da exclusão dos desfavorecidos, para o paradigma de uma educação aberta, dotado de uma ética da diversidade, da dialogicidade crítica, do exercício da liberdade, da afetividade, criatividade e solidariedade;
- Normose do mercantilismo da saúde, de um modelo centrado na enfermidade, atomístico, de mera reparação desconectada da prevenção e da inclusão, para o paradigma holístico, que integra as terapias ancestrais, tradicionais e emergentes às convencionais, com acesso gratuito e respeito à dignidade do corpo;
- Normose da dominação e da discriminação, para o paradigma da valorização do diverso, da pluralidade de memórias e de saberes, da subjetividade, intersubjetividade e singularidade, da unidade na diversidade;
- Normose patriarcal, da violência de gênero, da repressão do feminino, da prática criminosa do feminicídio e perversão infantil, para o paradigma da integração, do respeito e do encontro no qual a diferença não seja antagonismo, senão complementariedade;
- Normose do padrão repetitivo das conservas culturais e repressão da criatividade, para o paradigma que incentiva a arte, a renovação, com abertura para novas formas criativas de habitar o espaço comum e de conviver em harmonia;
- Normose da violência e da estagnação, para o paradigma de uma cultura de paz, a inteireza em movimento, a arte de viver criativamente o conflito e de sorver a dança participativa e fraterna de coexistir.
Entretanto, recomeçar implica em findar. É preciso consentir na morte para renascer no processo, na corajosa arte da renovação. Há um sistema insustentável que tende a desabar pelo peso das próprias contradições, e dos escombros da decadência surgem as sementes de um novo começo. O que desaba é ruidoso, o que nasce é silencioso. Neste tempo de veloz processo de transição planetária é muito importante não se deixar fascinar pela escuridão e caos à nossa volta, direcionando nosso olhar também para a delicadeza do desabrochar de uma nova ordem, as luzes de um novo dia que nasce no coração da noite.
Gosto de metaforizar este nosso momento planetário de crise da crisálida. São três as etapas deste processo de transformação modelar. A primeira é a da lagarta, que devora folhas compulsivamente, sem cessar. Entretanto, quando atinge o seu máximo limite ela para de se alimentar, definitivamente. Então a lagarta se coloca de cabeça para baixo e, ao seu redor forma-se, progressivamente, a crisálida. Esta segunda fase é de imensa desordem, pois cerca de sete bilhões de células que constituem o composto da crisálida não são mais alimentadas, e padecem de uma desesperadora fome, uma crise de colapso total. Neste momento tremendamente crítico entra em ação um grupo minoritário de células organizadas em discos, denominadas de imaginais, que contêm em si o design da borboleta, o sonho de um telos, de uma meta final. É assim que, do poder da imaginação criativa de algumas células visionárias finalmente nasce, na odisseia da metamorfose, a bela epifania de uma borboleta. Necessitamos de seres humanos imaginais para transmutar a megacrise que nos envolve em uma ocasião de aprendizagem, de metamorfose, enfim, de salto qualitativo para uma nova normalidade, um novo começo.
É tempo dialógico de conspirar pela reconstrução do projeto humano na alquimia mutacional do encontro. Pois ninguém transforma ninguém e ninguém se transforma sozinho; nós nos transformamos no Encontro. Mudar o mundo é mudar o olhar, é mudar o pensar, é mudar o agir, é habitar o instante e dizer sim ao desafio da mutação. O futuro da humanidade depende da ousadia necessária de um novo começo.
* Psicólogo, Antropólogo, Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade de Paris. Formação em diversas escolas humanísticas e transpessoais, criador de uma escola do Cuidado Integral – uma Ecologia do Ser, na perspectiva da quinta força em terapia. Coordenador geral do I Congresso Holístico Internacional (1987), que impulsionou a criação da Universidade Internacional da Paz – UNIPAZ. Introdutor, no Brasil, da Formação Holística de Base, fundamentada na abordagem transdisciplinar (1989) e do Colégio Internacional dos Terapeutas (1992), que coordenou durante vinte anos. Membro honorário da Associação Luso Brasileira de Transpessoal – ALUBRAT, Fellowship da Findhorn Foundation (Escócia). Reitor da UNIPAZ. Autor e coautor de mais de 30 livros.
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