Liderança no Século XXI: impactos da passagem do milênio

Liderança no Século XXI: impactos da passagem do milênio

A menor distância entre duas pessoas é o riso e a lágrima e, às vezes, há determinados momentos onde o riso e a lágrima transcorrem ao mesmo tempo. Jung chamaria de momentos numinosos que constelam a luz e(( a sombra. Pare))ce-me que nós somos todos muito privilegiados em existir num tempo de passagem, num tempo numinoso, num tempo de tantos risos e de tantas lágrimas. Parece-me que é isso que mais pode nos aproximar e eu tenho aprendido ao longo da minha caminhada que ninguém transforma ninguém e ninguém se transforma sozinho, nós nos transformamos no encontro e, sobretudo quando podemos dar expressão a essa alegria de existir, a essa biodança do universo; porém, ao mesmo tempo, quando podemos ter um coração suficientemente sensível para também chorar.

 

UMA CRISE ABENÇOADA: A CRISE DA CRISÁLIDA

Nós vivemos uma crise abençoada, é uma crise que nos desperta, graças a Deus e graças à dor. A crise tem uma dimensão instrutiva e é, sempre, uma oportunidade de aprendizagem, de evolução, de crescimento. Somos muito privilegiados porque essa é uma grande crise, talvez uma crise sem precedentes na história da humanidade conhecida. Eu não sei se vocês têm agradecido todos os dias por existir nesse momento: é um momento de passagem e aquilo que para algumas pessoas distraídas é a morte da lagarta, para as pessoas mais atentas é o nascimento da borboleta e é, por isso, que eu gosto de denominar essa crise de Crise da Crisálida. E, como diz um grande amigo e mestre, Jean Yves Leloup, “não é esmagando a lagarta que faremos nascer a borboleta”. Nós somos transeuntes, passageiros de um tempo de transmutação, transmutação consciencial, transmutação dos nossos valores, dos nossos conceitos e das nossas atitudes. E todos nós somos convocados para ser aquilo que nós somos. Todos somos líderes natos; todas as pessoas que eu conheci na minha existência, todas, foram e são líderes.

 (….) Vivemos um tempo absurdo, onde perdemos a escuta. Alguém perguntou a um índio de 101 anos, um Xamã, um Pajé americano: – O que você faz? Ele disse:

–  Eu ensino meu povo.

– O que você ensina?

– Quatro coisas, ele respondeu: Primeiro, a escutar;

– Segundo: que tudo está ligado com tudo;

-Terceiro: que tudo está em transformação;

-Quarto: que a terra não é nossa, nós é quem somos da terra.

Tudo começa pela escuta. Se você não tem escuta, a crise o que é? É um azar! E você vai sucumbir porque a única crise intolerável é aquela para a qual você não tem nenhum sentido para dar; é aquela que você não interpretou e para interpretar é preciso ter uma escuta. Quando Salomão podia ter pedido tudo, ele pediu um coração que escuta e tudo o mais lhe foi acrescentado. “Eu ensino meu povo a escutar.” As escolas deixaram de ensinar os alunos/aprendizes a escutar. Isso é triste! Nestes tempos sombrios que nós vivemos, talvez esse seja o lado pelo menos que mais me leva a indignar e, também, a chorar: saber que um pé de alface em qualquer horta é melhor tratado do que os meus filhos, os seus filhos estão sendo tratados nas escolas. Você pode imaginar um horticultor exigindo de todos os seus organismos vegetais o mesmo desempenho? Você pode imaginar um horticultor comparar um tomate com um pepino e desejar que um seja como o outro, apresente o mesmo resultado? Vocês podem imaginar um jardineiro exigir de todos os organismos da biodiversidade de um jardim o mesmo currículo? Isso é um absurdo. Vocês percebem onde nós jogamos na lata de lixo nosso potencial inato de liderança, de maestria? ( …..) O grande problema nesse momento é o que nós na UNIPAZ chamamos de normose.

Normose: A grande Praga do nosso tempo

O normótico é aquela pessoa que não escuta, é aquela pessoa que está pensando só em si, é aquela pessoa que não se dá conta que tudo está ligado com tudo; que para diante de um semáforo e vê aquele bando de crianças perdidas e  acha que isto não tem nada a ver com ele. Uns adolescentes matam: no Dia do Índio comemoramos o triste aniversário do mártir Galdino. Estes filhos de nossa sociedade não eram bandidos nem psicopatas, são nossos filhos; e o normótico acha que isto não tem nada a ver consigo; ele lê no jornal e se estiver tudo bem no seu canteirinho vai para sua vidinha de sempre…  A grande praga do nosso tempo se chama normose.  Nós estamos sendo uma espécie vivendo uma crise de quase extinção; quem diz isso são grandes cientistas que estão fazendo pesquisa de ponta, são as últimas declarações da UNESCO e do Clube de Roma. Mas o normótico não está nem aí quando se fala de problema atmosférico, quando se fala em buraco de ozônio, quando se fala no El Niño que não é mais um niño, já é um adolescente e vai continuar fazendo suas travessuras… O normótico acha que tudo isto não tem nada a ver com ele. O normótico pode chegar a ser um ministro, um governador, é… tem normóticos muito bem sucedidos, e nunca assume a responsabilidade.

A normose é a patologia da normalidade e, como dizia Jung, “só aspira à normalidade o medíocre”,  porque nós não estamos aqui para a normalidade, nós estamos aqui para realizar uma semente, nós estamos aqui para trazer uma diferença, nós estamos aqui para liderar e se nós não somos líderes é porque nós nos perdemos, é porque ouvimos demais papai, mamãe, a sociedade, os professores e é porque nós nos conformamos. Portanto, para falar em liderança no século XXI, nós temos que nos perguntar quais são os líderes desse momento? Por que as ideologias naufragaram ? O que é um líder? Eu compreendo que um líder é, sobretudo, uma pessoa que aprendeu a liderar a si mesmo:  você lidera seus pensamentos, seus sentimentos, suas atitudes? Você é dono de sua própria casa?  E isso nos traz ao coração dessa contradição da modernidade. Nos últimos séculos nós temos desenvolvido uma ciência, uma tecnologia fabulosas, espetaculares, maquininhas fantásticas! Porém, não houve o correlato desenvolvimento das dimensões psíquica, emocional, valorativa, ética, noética e o despertar espiritual. Temos uma tecnologia e ciência incríveis, sem alma, sem coração, sem espírito, como uma espada de Dâmocles presa por um fio de cabelo sobre a cabeça da humanidade. Portanto, antes de falar sobre liderança é necessário perguntar: o que é o ser humano?

 O que é um ser humano?

Nós não sabemos o que é um ser humano pleno. (….) Não sei se vocês já conheceram um ser humano pleno, inteiro, verdadeiro. Eu receio ter que dizer que o ser humano nesse momento é uma grande utopia, não no sentido do irrealizável, no sentido do irrealizado ou ainda não realizado, aquilo para o qual não há espaço.

Disse o Mestre: “Aos 15 anos orientei meu coração para aprender, aos 30 eu plantei meus pés firmemente no chão, aos 40 não mais sofria de perplexidade, aos 50 eu sabia quais eram os preceitos do céu, aos 60 eu os ouvia com ouvido dócil, aos 70 eu podia seguir as indicações do meu próprio coração, porque o que eu desejava não mais excedia as fronteiras da justiça”. Palavras de Confúcio, há 2600 anos. Ele sabia o que era um ser humano. O mesmo que diziam os antigos Terapeutas de Alexandria, que nos inspiraram a criar, na UNIPAZ, o Colégio Internacional dos Terapeutas, cujo mentor é o Jean-Yves Leloup : “Você troca de roupa em dois minutos;  leva-se uma existência inteira para trocar de coração”.

O que é um ser humano? O ser humano é uma promessa. Alguns mestres dizem que o ser humano ainda não nasceu. Nós somos apenas uma possibilidade. O ser humano é um potencial de florescimento. Se nós investirmos na dimensão do coração, na dimensão da alma, poderemos nos tornar seres humanos plenos. Porém, temos feito isso? Quando é que eu inclinei meu coração para aprender, aprender realmente quem sou… e comprar uma briga, nadar contra a correnteza muitas vezes. Porém, quando você se coloca no seu caminho, que é o caminho da sua promessa, o caminho com coração, então o mistério conspira por você e você evolui de uma existência perdida, alienada, para uma existência escolhida, ofertada. Portanto, essa é uma grande pergunta: “O que é o ser humano”?  E antes de falar sobre a questão específica da liderança, eu gostaria de fazer uns traços a título de indicação e, inspirando-me nesse grande irmão, Jean-Yves Leloup, para falar de algumas visões do ser humano. Não é possível saber o que é liderança, nem o que é educação, nem o que é saúde, se nós não esclarecermos nossos pressupostos antropológicos, ou seja, a visão que postulamos do ser humano porque é a partir dessa visão que diremos o que é saúde, o que é patologia, o que é uma liderança efetiva, o que é excelência humana e o que é  miséria humana.

Até onde eu posso enxergar, existem 3 tipos de seres humanos:

  • Aqueles que nascem e morrem piores do que nasceram – são os degenerados;
  • Aqueles que nascem e morrem como nasceram – são os que mantiveram a saúde ;  e
  • Aqueles que nascem e se tornam quem eles são, assim como uma flor se torna uma flor, uma mangueira se torna uma mangueira – são os que

aceitaram o desafio da evolução.

Quando perguntaram para Krishnamurti – que foi um ser humano pleno! – “Por que você ensina ?”, ele respondeu: “Por que um pássaro canta ?”. Eu gosto muito da provocação e sempre lembro de Abraham Maslow, um dos pais da psicologia humanística, que dizia : “Num certo sentido, apenas os santos são a humanidade”. Se quisermos saber o que é, de fato, um ser humano, talvez seja preciso estudar a existência de grandes ícones da plenitude, não apenas os da tradição católica; também os da tradição hindu, taoísta, xamanística, da tradição sufi, todas as tradições; também os ateus e agnósticos. É preciso estudar seres humanos que deram certo. E aí, lembro-me sempre dessas palavras de Teresa de Calcutá: “Santidade não é um privilégio de poucos, é uma necessidade de cada um de nós”.  Talvez, nesse momento, seja até uma obrigação de cada um de nós! A nobreza de uma plenitude minimamente lograda, nós também podemos encontrar entre os cientistas, filósofos e artistas.

Acontece que projetamos o nosso potencial em algumas pessoas especiais, fenômeno denominado pelo próprio Maslow de complexo de Jonas, que o Jean-Yves Leloup interpreta tão bem no seu livro “Caminhos da realização”.  Jonas, em hebraico, significa a pomba das asas cortadas. Jonas é esse ser que nos habita e que tem medo de ser quem realmente é, que tem medo de atender ao chamado da vocação. Os antigos estudavam os personagens das escrituras não apenas na sua dimensão histórica, mas também como grandes arquétipos, imagens estruturantes da nossa psique, da nossa existência. Parece-me que Jonas é o arquétipo que precisamos estudar quando queremos falar sobre liderança, porque ele nos indica sobre o nosso desejo inconsciente da normose: como resistimos a investir no nosso potencial máximo.

 O complexo de Jonas

 Jonas é aquele que foi chamado um dia: “Meu filho, desperta e vai para Nínive, a cidade grande. Lá crianças estão matando crianças, jovens matam pessoas dormindo de madrugada, pais não estão nem aí com relação à juventude, todo mundo está pensando só em si… Vai para Nínive; lá a velhacaria é consagrada, os velhacos são aqueles que têm sucesso; uma pessoa pura, inocente, em Nínive, se falar num meio político, por exemplo, vai ser ridicularizada; uma pessoa honesta, pura, de bons sentimentos é motivo de riso… tem que ser esperta, tem que ser velhaca. Jonas, vai para Nínive,  porque lá um jovem, se quiser demonstrar que tem um coração bom, se quiser ser bondoso, generoso, vai ser ridicularizado; tem que dar porrada! Jonas, vai para Nínive, porque esse povo está perdido; 40 dias mais e não haverá mais Nínive !”  Vocês notam que essa é uma mensagem muito atual.  E Jonas foi para Nínive? Não! Ele pegou um barco, mas foi para um Társis, um local tranqüilo. Isso mostra como nós temos uma tendência a fugir de nossas missões. Primeiro, há uma consciência interna que nos desperta, que nos coloca de pé. Pode ser uma crise, pode ser um terremoto, pode ser uma perda… há um momento em que você fica de pé. Porém, há sempre um convite sedutor da covardia e Jonas foge da sua própria promessa e, então, vem uma grande tempestade. Isso nos ensina que, quando você foge do seu próprio caminho atrairá tempestades;  não só para você, também para as pessoas que estão ao seu lado.

A doença não é ruim; se você a escuta ela se torna um texto sagrado a ser interpretado. Ela tem uma mensagem: a doença é um fax que você recebe e que diz: “Você se desviou do seu caminho”. Eu levei muitos anos para aprender isso: quando nos desviamos do nosso caminho nós atraímos doenças, acidentes, nós atraímos infelicidade. Acontece que vivemos num momento tão perdido, onde prevalece uma propaganda normótica: “tomou doril, a dor sumiu!…” Não interpretamos e o telefone continua tocando; às vezes em outros números até que pode ficar tarde demais. Então, Jonas que estava dormindo no porão do navio, novamente foi colocado de pé pelo capitão que indaga por que ele não está clamando por seu Deus, como todos os outros. Jonas era um fujão, mas era, também, um homem sincero que me faz lembrar o poeta Omar Khayyan que inicia o seu Rubaiyat dizendo: “Todos sabem que meus lábios nunca murmuraram uma oração. Não procurei nunca dissimular os meus pecados. Ignoro se existem realmente uma Justiça e uma Misericórdia. Mas, se existem, não desespero delas: fui sempre um homem sincero.”  Quem pode dizer isso? Jonas foi sincero e disse: “Eu sou a contradição, eu estou fugindo do meu Deus, estou fugindo da minha palavra, estou fugindo da minha voz mais profunda. Podem me atirar no oceano que a tempestade vai amainar.” Mas, os homens eram generosos e primeiro tiraram a sorte que apontou para Jonas.

O que é sorte? É o que Jung chama de sincronicidade e os antigos, denominavam de sinais: eles ouviam o trovão, eles ouviam a coruja que pia, eles ouviam a pedra no meio do caminho, porque sabiam que faziam parte do Universo. Sabiam que eles não eram destacados do Universo e nós perdemos essa orientação, essa consciência de participação. Tornamo-nos pobres diabos jogados num mundo sem sentido… É isso que o normótico crê de si mesmo. Portanto, Jonas mergulha no oceano. Esse é outro ensinamento muito importante; como dizia um grande sábio, mestre Eckart, diante da Inquisição: “Eu posso me enganar mas eu não posso mais mentir”. Há um momento em que você não pode mais mentir, você vai sofrer tanto, vai atrair tanta tempestade, que você vai resolver mergulhar mais cedo ou mais tarde, um dia todos nós mergulharemos no poço de nós mesmos.  E aí, Jonas terminou no ventre do grande peixe e lá ele de novo disse: “Eu vou para a minha batalha, eu juro de novo, eu faço solene promessa”.

 (….) Esses textos são muito antigos e são muito atuais, são muito contemporâneos. Em seguida, quero apenas ilustrar um pouco, através de alguns riscos, (….) esse oceano onde Jonas mergulhou, esse poço que podemos chamar de ser humano.

QUATRO VISÕES DO SER HUMANO NO MUNDO:

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Já os pré-socráticos falavam sobre essas visões e hoje continuamos falando delas. A primeira consideração é que o ser humano é corpo, é matéria, é soma, é pó que volta ao pó. Essa é a antropologia materialista muito respeitável, porque de fato nós somos pó que voltará ao pó; tudo que foi composto será decomposto, caminhamos para o fim e, nesse caso, qualidade total, você se tornar um ser humano líder, seria você liderar essa matéria que você está sendo: tomar as vitaminas certas, fazer movimentos, desenvolver bons reflexos condicionados e aproveitar o máximo, porque daqui a alguns anos você será um risco no espaço!… Demócrito já falava sobre isso, o Demócrito dos átomos. Hoje há maneiras muito sofisticadas de falar sobre esse pressuposto porém, isso talvez não nos ajudará muito quando estivermos vivendo momentos mais avançados na existência. Você pode ser materialista na primavera, no verão, mas quando vem se aproximando o outono e quando o inverno começa a bater na porta, é quando você é lembrado que caminhou toda sua existência para voltar para sua própria casa de onde você jamais partiu, então… quem tiver apenas esse pressuposto vai fazer como Freud diante de sua filha morta que dizia : “Essa é uma ferida narcísica irreparável . O que pode a ciência em relação a isso?”.

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                            Psique   ___________

Então, há aqueles que colocam outro risco e dizem que nós estamos sendo matéria sim, mas, não qualquer matéria; nossa matéria é informada, animada. Somos dotados de uma alma ou psique, psique – alma, ou seja, mente e emoções. Trata-se, então, de desenvolver a dimensão psíquica. Felizmente hoje, já se fala na inteligência emocional. No nosso sistema clássico uma pessoa pode chegar a ser um pós–doutor sendo analfabeto emocional, um bárbaro da vida, um ignorante da alma.  Isto tem trazido grandes conseqüências bastante graves. Quando Oppenheimer presenciou, estarrecido, as conseqüências de seus estudos: a bomba atômica explodindo Nagasaki,  Hiroshima e a nossa consciência ele quase enlouqueceu. Depois, afirmou que o pior perigo da humanidade é o cientista alienado. É premente uma alfabetização psíquica.

A alma é o melhor negócio!  O que adianta você ganhar o mundo inteiro se você perdeu quem você é? Observe que essa é uma mensagem antiga… Mas onde nós aprendemos a desenvolver a psique? Onde há desenvolvimento emocional? Nas escolas? Há um movimento, nesse momento, dramático e salutar de reformulação do ensino. E não se trata apenas de fachada, nós temos que conspirar por uma reformulação radical. Eu me lembro de um educador, num congresso holístico internacional, que disse ao iniciar sua fala:  “Eu quero apenas ler a carta de um menino, a carta que ele deixou para os pais antes de pular do 15º andar de um edifício qualquer.”  Ele abriu a carta e leu : “Por favor, destruam as escolas !”. Até onde eu posso compreender, a única escola que merece ser preservada é aquela que facilita que o aprendiz oriente o coração para aprender.  É preciso conspirar por isso, colocar alma no pré-primário: que as crianças possam aprender sobre emoções, sentimentos, exercitar relacionamentos enfim, aprender a aprender sobre si mesmo.

Infelizmente, a educação tem se resumido a um triste processo em que a criança  tem que engolir informações,  que se tornam obsoletas em quatro anos,  e depois  vomitá-las em exames. Perpetua-se esse absurdo, essa técnica de tortura, que é a comparação. Compara-se uma pessoa com outra pessoa. Cada criança é um milagre suficiente para não ter que ser comparada com ninguém a não ser consigo mesma. Mais tarde, num futuro próximo e mais saudável, comparar uma criança com outra será considerado crime. E por aí, nós podemos nos dar conta de quanto nós nos perdemos, porque vejo os pais estarrecidos, às vezes, por questões de mensalidades e outros detalhes, mas não pelo essencial.

 Aqui estamos exercitando a antropologia psicossomática: nós assumimos uma dimensão anímica e aí nossos horizontes se abrem muito. Há uma questão que precisa ser dita rapidamente: as pesquisas psíquicas de ponta, na parapsicologia, na psicologia transpessoal, na tanatologia, apontam para uma hipótese da psique ser transcerebral. Nada nos evidencia, por exemplo, que a psique não possa transcender os limites da matéria e, mesmo, sobreviver à morte do corpo. Pelo contrário, uma pessoa que seja realmente cientista e que se dedique a estudar os textos recentes dessas abordagens e qualquer terapeuta com uma escuta mais generosa saberá que, talvez, “morte” seja uma palavra a ser pronunciada no plural.  A primeira morte é a morte do corpo, porém, a psique pode perdurar, num estado errático, de não apaziguamento. E isso nos traz um imperativo ético: além daquele “aproveite tudo que você puder”. Uma pessoa que queira suicidar-se, por exemplo; ela pode matar o seu corpo, naturalmente.  Agora, me diga que arma alguém pode possuir para para matar a alma, que é onde está o programa do sofrimento e desespero como também  da  felicidade? Quando  você estiver se sentindo muito infeliz, olhe para dentro, que a causa esta aí. Quando você estiver se sentindo no sétimo céu, olhe para dentro, olhe para sua casa interna, a causa também está aí. Então, nós somos aqui uma bidimensionalidade corpo – psique e podemos ainda adicionar um terceiro risco e chamá-lo de NOUS.

Soma    __________

                Psique  __________

                Nous    __________

 Nous refere-se à dimensão noética, uma consciência pura, sem objeto. Refere-se a uma dimensão silenciosa, serena e pacífica da psique profunda. Não é difícil reconhecer que a psique superficial é inquieta e agitada.  Buda, um grande líder e mestre,  um paradigma de ser humano que deu certo ( …) dizia que a mente, a alma, é um macaco pulando de galho em galho, em busca do fruto, na selva do condicionamento humano. Esta definição aponta para esta inquietude da alma ordinária. Atinge-se nous quando o macaco se aquieta, e há toda uma pedagogia orientada para este alvo. É importante salientar que todos os seres humanos têm o potencial de realização búdica. Buda não é um nome; é um termo que significa desperto, ou seja, alguém que despertou para o seu potencial máximo (o nome era Sidarta Gautama, um príncipe que viveu há 2.600 anos, na Índia). Buda não queria que você fosse um budista; ele queria que você se tornasse, também, um Buda. Porisso há um ditado zen que diz: “Se você encontrar Buda no seu caminho mate-o”. Para você não correr o risco de apenas querer segui-lo. Para que ele possa nascer em seu próprio coração. Seres como Buda foram os grandes mestres da inteligência noética.

Você consegue desligar os seus pensamentos? Se você é capaz disso, então você é um líder na sua mente. Se não conseguir você está sendo levado, está sendo pensado, você não é o pensador, o sujeito. A NASA construiu um capacete fantástico, ligado por eletrodos à cabeça do piloto para que a nave seja comandada por seus pensamentos. O capacete esta lá, mas, onde está o piloto capacitado para tal façanha? A dimensão noética é uma dimensão silenciosa, contemplativa, que penetramos quando silencia os nossos diálogos internos.  É como penetrar no fundo do lago, além do tumulto de sua superfície; aí poderemos encontrar com o Grande Silêncio, que é mãe de toda palavra justa, de toda virtude e de uma consciência capaz de apreender a realidade. Tereza de Calcutá dizia:  “o fruto do silêncio é a oração, o fruto da oração é a fé, o fruto da fé é o amor, o fruto do amor é o trabalho”. Tudo começa pelo silêncio e termina com aquilo que o companheiro Leonardo Boff denomina de “mística dos olhos abertos e das mãos operosas”.

Portanto, para desenvolver a qualidade noética nós temos tecnologias milenares que vêm das tradições sapienciais que, na UNIPAZ, denominamos de holopraxis: o yoga, a oração –  que hoje é estudada e já foram evidenciados os seus efeitos benéficos para a saúde -, a contemplação, enfim, os caminhos meditativos das tradições orientais e ocidentais.  Todas as grandes tradições tribais, por exemplo, prescrevem a oração.  Orar, no sentido mais amplo, é ter uma intenção sagrada. Qual é a sua intenção sagrada?  Para quem você se levantou essa manhã?  Para que você se coloca de pé? Ter uma intenção sagrada é ter um sentido maior.  Enfim, encontraremos as tecnologias de transmutação consciencial no sufismo,  nas diversas modalidades meditativas do budismo, do cristianismo, sobretudo do cristianismo ortodoxo, no xamanismo e em todos os caminhos de despertar da consciência sintética. É preciso introduzi-las nas escolas, se quisermos que a educação abranja a dimensão consciencial.

Se você não sossega o seu corpo, se você não é capaz de sentar e imobilizar o corpo – que é o mais fácil – como você será capaz de chegar a uma quietude da mente, a uma quietude do pensamento, do sentimento?  A nova escola que já está emergindo, inclui nos seus currículos a psique, levando em consideração, também, a notável dimensão onírica, a inteligência dos sonhos. Vocês sabiam que tem professores que nunca perguntaram pelos sonhos dos seus alunos? O sonho é um estado de consciência extraordinário que complementa a consciência de vigília. Nós já temos 100 anos de pesquisa científica dos sonhos e milênios de pesquisa nas grandes tradições culturais. No entanto, o ocidental ordinário, condicionado pelo reducionismo racionalista, é como aquele pescador que chegou muito cedo para pescar, não tendo o sol ainda nascido; para passar o tempo ele jogava pedrinhas nas águas escuras do rio – e quando ele pegou a última pedrinha, o primeiro raio de sol da vigília surgiu, e ele viu que a pedrinha era um diamante!  E assim fazemos, jogando nas águas da alienação e do descuido toda a riqueza simbólica dos sonhos. É fundamental resgatar a pedagogia simbólica dos antigos, se quisermos facilitar a emergência de seres humanos inteiros.

È preciso, também, desenvolver a dimensão noética para chegarmos na fonte da criatividade máxima, no manancial da sabedoria da espécie e da liderança intuitiva e silenciosa. O bom líder, dizia Lao Tsé, é aquele que ninguém sabe que existe; terminada a tarefa todos dizem: “eu fiz isso por mim mesmo”. Da dimensão noética surge a mais elevada maestria. Ela tem sido comparada a um espelho que pode refletir a realidade; é através de nous que podemos espelhar, fidedignamente, a realidade. Uma pessoa que não tem essa qualidade é como uma pulga saltitante, uma “barata tonta” que todo o tempo projeta as suas memórias em suas experiências, cegando-se para a realidade além de suas fantasias. Quando Cristo indicava: “quem não for adúltero atire a primeira pedra”, ele falava com relação aos olhos. Adulterar a realidade é você projetar na realidade seus pensamentos, seus conceitos, suas memórias; não adulterar é você ter os olhos abertos. Diz o poeta Pessoa, no Guardador de Rebanhos:

“O meu olhar é nítido como o girassol; eu não penso… pensar é estar doendo os olhos, pensar é não compreender. O mundo não foi feito para pensarmos sobre ele mas, sim, para olharmos para ele e estarmos de acordo. Eu não tenho filosofia, eu tenho sentidos e se eu falo sobre a natureza não é porque eu saiba o que ela é; é porque eu a amo e amo-a por isso, porque quem ama nunca sabe o que ama, nem por que ama, nem o que é amar. Amar é a eterna inocência, e a única inocência, não pensar.”

Em nous atingimos uma qualidade de mente que transcende o pensamento, Krishnamurti insistiu nisso ao longo de toda sua existência: o pensamento é o ruído do passado. Quando estou doente, eu penso. Descarte, um dos pais da modernidade, afirmava: penso, logo existo! Poderemos dizer: não penso, logo eu sou! É a partir dessa dimensão que nós poderemos resgatar uma maestria inata.

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                            Psique ____________

                            Nous    _ _ _ _ _ _ _ _ _

                                                         Pneuma

    E ainda há um último risco, e esse, não pode ser da mesma cor e não pode ser também no sentido horizontal. Tem que ser vertical. Alguns vão traduzir Nous por espírito, não é assim como estou traduzindo; eu traduzo Nous por consciência sem objeto, não por espírito. Se você olha o sol se refletindo no espelho você vai dizer, olhando para o espelho, que o espelho é o sol? O espelho reflete o sol, assim como a dimensão noética pode refletir a luz de alguma coisa que está além da existência, e é isso que os antigos chamavam de pneuma.

Pneuma é uma tradução do hebraico Ruah, que na sua origem é feminino e significa  soproPneuma é neutro em grego e foi traduzido depois como espírito, em latim, um termo masculino. Isto é uma distorção pois,  na sua origem, essa é a dimensão uterina do feminino-luz. Pneuma é, filosoficamente falando, a essência. Há um termo ainda menos contaminado e que gosto muito: Pneuma é Vida. Precisamos diferenciar vida de existência, eu insisto muito nisso. Existência é uma manifestação da vida, é aquilo que passa: estes riscos horizontais representam a existência. Certa vez Buda, indagou aos seus discípulos sobre o que era o oposto da morte? “Vida”, eles disseram, com a mente polar. E Buda respondeu: “Não, é o nascimento, porque a vida é eterna”. Já dizia Cristo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”.  Nós confundimos muito a vida com a existência. O que nós denominamos, com diversas palavras, Deus, talvez seja um princípio de vida inerente a todos os universos. Portanto, essa é a dimensão essencial e, para os antigos como para os novos terapeutas, uma pessoa em boa saúde é aquela cuja dimensão noética, cuja psique e cujo corpo ou  dimensão somática são habitadas pela essência. Uma pessoa com saúde plena, no dizer do doutor Graf Durkheim, o criador da terapia iniciática, é aquela cuja essência se manifesta na existência. É quando o que você pensa coincide com que você é; é quando o que você fala coincide com o que você pensa; é quando o que você faz coincide com que você fala; é quando você se torna congruente, verdadeiro. É quando você se torna aquilo que você é, nem mais nem menos. E essa, é uma dimensão que não é desenvolvida. Essa palavra desenvolvimento espiritual é muito contraditória, pois como pode desenvolver-se aquilo que não nasceu, que não teve início, que não tem fim? Como afirma a sabedoria Crística: “O espírito está pronto, mas a carne é fraca!”. A carne é tudo que passa, enquanto a essência é Aquilo Que É.

Acontece que, no Século XVII, foi parida a Idade Moderna, por bons motivos, já que estávamos superando um tempo no qual a ciência era reprimida em nome de alguma coisa que, confusamente, era chamada Deus – basta lembrar a diabólica Inquisição que matou mais seres humanos, proporcionalmente, do que a 2ª Guerra Mundial! Então, surgiu um Descartes, traumatizado pelos dogmas, que desenvolveu o método analítico, enaltecendo o racionalismo mecanicista. Bacon, falou dos sentidos, desenvolvendo o empirismo. Surgiu um Galileu que nos introduziu no mundo da quantidade e o genial Newton, que fez uma grande síntese que denominou de física mecânica, entre outros. Todos eles conspiraram na época e modelaram a obra prima do racionalismo científico que foi um movimento compensatório, de resgate da objetividade e da razão, que às vezes tem razão…

Com a nossa tendência polar, nós saímos de um extremo para o outro, neste momento sombrio de uma esgotada modernidade, onde o sagrado, a dimensão essencial, é reprimida em nome de alguma coisa que, confusamente, chamamos ciência. Se você viver alguma experiência genuinamente espiritual e procurar um psicólogo convencional, ele vai lhe rotular de “doente”, porque não há, em sua antropologia, a categoria do espírito. Se você estiver vivendo aquilo que o notável psiquiatra Stanislav Grof, e a sua esposa Cristina, denominam de emergência espiritual – eles criaram, há anos, um movimento internacional que chamam de emergência espiritual – se você viver uma experiência mística, se a essência bater em sua porta e você for procurar um psiquiatra convencional, ele vai lhe dar algum nome esquisito e vai lhe prescrever remédios, também. Agora, talvez o mais impactante, como afirmou Grof num recente congresso: se você tiver uma legítima experiência espiritual e procurar um sacerdote convencional, um pastor, ele vai lhe levar a um psiquiatra! Eles falam de coisas acontecidas há 2000 anos, mas se você viver uma experiência parecida, você será ouvido com uma escuta suspeita. Onde podemos encontrar um espaço de escuta da essência e da inteireza humana?… E é por isso, nesse momento, as pessoas mais revolucionárias, os verdadeiros conspiradores são aqueles que falam do espírito e que não temem dizer essa palavra em universidades, em lugares como esse, em lugares públicos, porque enquanto nós não ousarmos falar em espiritualidade, ainda estaremos muito longe de uma humanidade  plena.

Quando eu falo em espiritualidade, me entendam bem, não estou me referindo a nenhuma igreja, a nenhuma religião particular, embora respeite todas. Refiro-me à espiritualidade como o fazia Einstein, apontando para uma vivência cósmica; ou, ainda, outro físico contemporâneo, que recentemente trouxemos a Brasília, Fritijof Capra, que denominou o seu penúltimo livro de Pertencendo ao Universo. Espiritualidade é uma consciência não-dual, uma consciência de participação, da parte no todo, que na essência é amor, e na prática é solidariedade. Uma pessoa que despertou para essa dimensão espiritual, é uma pessoa que não se vê separada do outro, da comunidade e do Universo. Eu pergunto: em sã consciência, você colocaria fogo no seu corpo?  Se você sente-se não-separada do outro, você jogaria fogo em alguém que está dormindo num banco? E se você se sente não-separado da natureza, você iria empestá-la, você iria destruir os ecossistemas por uma neurose de progresso compulsivo, que foi decantada no século passado por Comte e que, agora, testemunhamos o lado sombrio dessa religião do progresso a qualquer custo, progresso a custa da hecatombe; você empestaria a natureza se você se sentisse não-separada dela?

Nós vivemos um momento dramático para aqueles que têm os olhos abertos e a escuta do inconsciente coletivo; essas pessoas entram em pânico! ( …) Sinto-me feliz por estar sendo um operário, há mais de dez anos, da UNIPAZ, que é um verdadeiro canteiro de obras, para a edificação de um novo paradigma, onde lutamos com muita dificuldade e já desenvolvemos programas que foram enviados para o mundo inteiro: Japão, Europa, Índia, Canadá, EUA…  Nós falamos na tridimensionalidade de uma ecologia: a ecologia interior, a ecologia social e a ecologia ambiental.  Há que trabalhar com uma visão de ecologia profunda e denunciar a existência dessa repressão perversa do espírito, da essência, com conseqüências que se manifestam através de doenças a nível pessoal, a nível social e a nível ambiental. Gosto de confiar que o ser humano vai ser descoberto no Século XXI. E se isto não acontecer, não haverá Século XXI para o ser humano! Portanto, estes riscos são como  um dedo indicando para a lua e a partir dessa imagem do ser humano podemos, brevemente,  falar de liderança.

 LIDERANÇA: DO TÉCNICO AO FACILTADOR HOLOCENTRADO

Como falar de liderança sem falar sobre o que é o ser humano?  Então, eu me recordo novamente desse Xamã dizendo: “Primeiro, eu ensino meu povo a escutar”, uma escuta ampla, uma escuta bastante. Depois, se você escuta vai perceber que tudo está ligado com tudo. “Não há como” – diz o poeta e também o físico -, “arrancar uma flor no seu jardim sem mexer com as estrelas”.  Uma borboleta levanta vôo na Austrália e um tufão percorre as costas dos Estados Unidos; tudo está ligado com tudo. Com esta consciência, o passo seguinte é óbvio: tudo está em transformação, tudo está em mudança, onde você pisar é ponte, só há mutação; não há o que passa e nem há aquilo que faz passar, só há passagem. Quando você acorda para esta realidade, você não mais se sentirá proprietário de terra alguma. Toca-me muito como algumas sociedades tribais reivindicam a terra: estes sem-terra não reivindicam a terra para que seja deles; eles dizem: “Nós precisamos da terra por que nós somos da terra. Como nós vamos viver sem a terra se pertencemos a ela?”.

TRÊS ESTÁGIOS DE LIDERANÇA

 Quanto à liderança, creio que há três estágios na nossa evolução natural para realizar a semente da maestria em cada um de nós.

O 1o estágio: O líder centrado na teoria, na ideologia e na técnica

Denomino o primeiro estágio de líder centrado na teoria, na ideologia ou na técnica. Trata-se da infância do nosso processo de amadurecer a própria semente do imenso potencial humano. Para não partir do ensaio-e-erro precisamos estudar os antigos, os que nos antecederam na busca. Então, nós aprendemos técnicas, teorias e nelas nos centramos, o que nos traz um pouco de segurança nas nossas incertezas. Adotamos verdades que não são nossas e fazemos como aquele boiadeiro, segundo o Dhamapada, que só conta o gado alheio!… Isso é bastante justo quando somos criancinhas; precisamos da mão dos antigos, como aquela pessoa que está caminhando e no seu caminho se depara com um rio. Há uma canoa na sua margem; ele desconhece a profundidade do rio, as suas ondas. O que você acha que é a atitude sensata: ele utilizar a canoa ou arriscar-se nadando? Utilizar a canoa, evidentemente. Não foi ele que a construiu mas ela está ali, disponível. Agora, quando ela termina a travessia do rio de sua própria insegurança e imaturidade, imagine essa pessoa olhando para a canoa e dizendo: “Sem isto eu não sou ninguém!”; em seguida colocando-a em cima da cabeça e continuando, com este fardo, a sua caminhada. Esta imagem bem pode representar o líder centrado na teoria e na técnica, e é isso que nos traz esse drama da esclerose metodológica e psíquica.

(…) Participando de uma Universidade da Paz, também venho me perguntando há muitos anos: “o que é paz ?” (…) Diga-me, então, o que é o oposto à paz?  Diga o primeiro pensamento que vem à sua mente? O que vem primeiro é conflito, é guerra. Se você busca a tradição, por exemplo, dos antigos chineses, você então vai se deparar com esse tratado sapiencial – o I Ching – contido em apenas seis riscos, o hexagrama  da paz que (…) representa o céu sustentando a terra:

   O hexagrama oposto da paz (…) representa a terra sustentando o céu, e que os sábios chineses não chamam de guerra e, sim, de estagnação:

Onde você estiver estagnado no seu corpo, na sua psique, na sua dimensão noética, aí você terá perdido a paz e aí você estará adoecendo. Esta é uma esclerose psíquica que caracteriza um líder centrado, fixado, numa ideologia ou sistema, seja ele qual for, ( …. ) um líder que recita uma ideologia e quer ser fiel apenas a uma ideologia. (….) São líderes muito restritos, porque eles ficam seguindo trilhos e perdem as trilhas; morre o criador, vegeta a criatura; não há inovação nem  criatividade. Tudo está se transformando e necessitamos um permanente processo de atualização dos conceitos e atitudes. Portanto, a pessoa que permanece nesse estágio inicial, vive aquilo que na mitologia grega é indicado como a cama de Procusto. O Procusto é um personagem muito hospitaleiro, porém, o seu hóspede é obrigado a se adaptar à sua cama. Caso seja maior, para se adaptar à cama, Procusto corta suas pernas, naturalmente. Caso seja menor, terá as suas pernas espichadas.  E assim são as escolas normóticas, com currículos que são genéricos e rígidos,  não  centrados no aprendiz. Assim, também, são líderes que tratam os outros como números ou políticos centrados numa técnica ou teoria que tornam-se ultrapassadas. Lembro uma estória antiga, que fala de uma pessoa que procurava um objeto debaixo de um holofote, na rua. Alguém lhe pergunta: “É aí que você o perdeu?” E ele respondeu: “Não, eu o perdi lá em casa, mas aqui está mais claro!…”  Infelizmente, a maior parte das pessoas fica capturada nesse rede cômoda da mesmice, jamais assumindo a autoria, o lugar do Sujeito da própria existência.

O 2o estágio: O líder centrado na pessoa: o facilitador afinado com o processo

Porém, alguns vão contra a correnteza; alguns são teimosos o suficiente. Eis do que necessitamos: teimosia.  Um menino conversava com outro e dizia: “Quando eu crescer serei um profeta e vou falar coisas que ninguém vai querer ouvir”. O outro, intrigado, perguntou: “Então por que você quer ser um profeta se ninguém vai querer ouvi-lo?” E o primeiro respondeu: “É que nós, os profetas, somos muito teimosos!” Sem teimosia você jamais virará essa página; é preciso a disciplina da busca. Porém, se você for além, entrará numa outra qualidade de liderança que denomino de líder centrado na pessoa, no problema, no aqui e agora.  Esse é um líder que está disposto a jogar fora as suas tecnologias, as suas metodologias na lata de lixo, caso estejam interferindo na sua relação com a realidade viva, que não tem endereço certo, a realidade sempre mutante, o inusitado instante. Para você estar afinado com o processo da realidade, você também precisa ser mutante! Esse líder já ilumina um auditório. Um grande profeta desse tipo de liderança foi Carl Rogers, que partia do princípio que todo ser humano tem uma tendência ao auto-desenvolvimento,  auto-realização e auto-regulação, bastando, para isso, que haja um terreno fértil. E é aqui que se coloca uma palavra nova : o facilitador.  Você facilita  propiciando um terreno fértil, onde cada um possa se tornar aquilo que é, e aqui o líder encontra-se em sua maturidade.

Durante muito tempo postulei essa abordagem humanística como sendo o fim do caminho. Porém, há um momento em que, se você olhar bem para os olhos de um ser humano e se você abrir ainda mais a sua escuta, você vai se dar conta de que o ser humano é mais do que um ser humano. Lembro como me tocou encerrar um congresso recente na Universidade de Lisboa; era um congresso que contava com cientistas como Grof, Sheldrake, Pribran, Amit Goswami, entre outros. Então, lembrei-me de um filósofo espanhol, Uriol Anguera, que foi convidado também para encerrar um congresso de cibernética, depois de uma semana discutindo sobre processos mecânicos, informacionais, sobre toda essa racionalidade da máquina. Então, o filósofo levantou, tomou a palavra e disse: “Eu vim aqui para falar de uma trindade diabólica: primeiro veio Darwin e nos ligou a um macaco, depois veio Pavlov e nos ligou a um cão; então, veio Freud e nos ligou a um falo. E como os três mosqueteiros eram quatro, veio Norbert Wiener e nos ligou a uma máquina. Eu estou aqui para dizer que pelo menos 1% do homem é Deus!”  Este 1% metafórico aponta para o Mistério. Se você olhar bem para o ser humano e se você de fato escutá-lo, em algum momento, você vai se deparar com o Grande Mistério; em algum momento você vai encontrar aquelas palavras de Teilhard de Chardin:  “O ser humano é o sacerdote da Criação. É o espaço onde o próprio Universo pode aprender a se conhecer, pode aprender a se amar”. Portanto, é preciso virar essa página também, e muito se caminhou para chegar aqui; é um itinerário de realização que começa sempre com o primeiro passo: inclinar o coração para aprender.

O 3o estágio: O líder holocentrado: o facilitador conectado à tomada universal

O terceiro estágio – e eu vim aqui para trazer essa notícia final, pois essa é a nossa conspiração;  por isso estamos aqui;   por isso existe a UNIPAZ – o terceiro estágio, que inclui os anteriores, pode ser chamado de excelência: a liderança holocentrada. O líder holocentrado é o que se conectou, se religou à totalidade, dando-se conta de que  não está dissociado da sociedade, do ambiente, do universo e do Grande Mistério. É o líder que escuta as sincronicidades: ele volta, à moda dos antigos, a escutar o trovão, a escutar o cochicho dos eventos que se conectam numa unidade, sempre a partir de uma unidade indissociável, isso é que é sincronicidade. É o que Jung juntamente com Pauli, um representante da física quântica, chamava de princípio de conexões acausais, que alguns vão chamar de transcausais. É o domínio das coincidências significativas quando os eventos se conectam pelo significado e não pela causa. Nós existimos numa unidade de eventos; não estamos separados dessas cadeiras, dos seres humanos que nos cercam, das maquininhas e de tudo o que nos envolve. Portanto, quando você faz uma pergunta, você pode acionar uma resposta implícita no mistério da totalidade e isso é sincronicidade, um conceito já clássico, sustentado numa reflexão científica. É um líder que está, numa só palavra, “ligado”: ele está ligado à tomada universal; é um líder que conectou os seus dois hemisférios cerebrais: o hemisfério racional, científico, tecnológico com o hemisfério poético, místico, da comunhão; o hemisfério analítico com o hemisfério sintético; o hemisfério esquerdo, com o hemisfério direito: as duas asas que um pássaro necessita para voar, as duas pernas que um ser humano necessita para empreender uma viagem com coração. Metaforicamente, podemos falar que é um líder centrado no corpo caloso, milhões de neurônios que conectam os dois hemisférios cerebrais, religando-os.

A holística não é nem analítica, nem sintética; a holística não é nem científica, nem espiritual; a holística implica uma comunhão, uma sinergia entre essas duas naturezas e duas formas de apreensão do real. Como diz Capra, “A ciência não precisa da espiritualidade, pois tem o seu caminho próprio, é o caminho analítico; a espiritualidade não precisa da ciência, pois tem o seu caminho próprio, o sintético, o intuitivo. Mas o ser humano necessita de ambos.” O corpo caloso, que gosto de metaforizar como o chifre do unicórnio, que os antigos denominavam de terceira visão, é o substrato neurológico da liderança holocentrada. Portanto, esse é um líder na sua excelência, é um líder que ousou resgatar as suas asas sem perder as suas raízes, é um líder que pode dizer com o poeta:

“Goza a euforia do vôo do anjo perdido em ti. Não indague se nossas estradas, tempo e vento desabam no abismo. Que sabes tu do fim ?  Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas. No deslumbramento da ascensão, se pressentires que amanhã estarás mudo, esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta. Canta, canta. Talvez as canções adormeçam a fera que espera devorar o pássaro. Desde que nasceste não és mais que o vôo no tempo  rumo aos céu?  Que importa a rota! Voa e canta enquanto existirem as asas” (Menotti del Picchia).

Portanto, era isso que eu queria trazer como a essência dessa mensagem. Há um líder de todos os líderes, o Grande Guru, que é a essência. Quando você se deixa guiar por essa essência, é quando você se faz um líder na sua excelência e plenitude. Então você poderá assumir a autoria de seus passos e não será mais uma folha levada pelo vento.  Esse é um potencial que todos nós possuímos, e não se trata de desenvolver a espiritualidade, que já está pronta. Trata-se de desenvolver a nossa dimensão corporal, ou seja, escutar, atender ao telefone da doença, da crise, que nos convoca. Aprender o sentido dos nossos passos. Trata-se de trabalhar com a psique, introduzindo qualidade em nossa alma e, também, qualidade na dimensão noética. Assim o sol da essência vai se manifestar, naturalmente. Você já deve ter ouvido em certos dias cinzentos a  expressão: “Hoje não tem sol!”  É verdade? Haverá um dia em que não há sol? Não, a verdade é que hoje tem nuvens! A nuvem da ignorância existencial é aquela que nos mantêm atados a uma corrente e a uma prisão, aquela que nos tira o sabor da aventura e o gosto da liberdade.

Esse líder se manifesta através da amorosidade. É preciso ousar dizer que o espírito é amor; o espírito se manifesta através do amor. Se não houver amor então, para quê viver? Portanto, o amor está no início, está no meio e está no fim. Nós estamos aqui para aprender a amar – e todo o resto é bobagem. Na medida em que você aprende a amar, você faz doação, você aprende a doar. Alguns dão do que têm, outros dão do que sabem. E há aqueles que dão do que são: são os grandes mestres, são os grandes líderes e a humanidade sempre nos ofereceu o testemunho de seres humanos plenos que nos convocam a subir a nossa própria montanha.

Quero concluir com um poema de um poeta espanhol, Juan Ramon Jimenez, concebido quando ele vivia um tempo muito depressivo, quando percebia que a sua alma estava sendo subtraída. Então ele retirou-se por algum tempo numa montanha, nos Pirineus. Ao descer da montanha ele nos brindou com a inspiração sagrada desta poesia:

“Eu não sou eu.

Sou este que caminha ao meu lado sem eu vê-lo;

que por vezes, vou visitar, e que, às vezes, esqueço.

O que cala, sereno, quando falo, o que perdoa, doce, quando odeio,

o que passeia por onde estou ausente,

o que estará de pé quando eu estiver morrendo.”

Eu não sou eu; eu sou Alguém que caminha ao meu lado. Por esse Alguém, vale a pena rir e chorar. Por esse Alguém, vale a pena conspirar.

Este texto tem como base a transcrição da palestra de Roberto Crema “Liderança no Século XXI: impactos da passagem do milênio”, proferida no Centro Cultural da Câmara dos Deputados e irradiada pela TV Câmara e TV Senado, em maio de 1998.