Vivemos um período ao mesmo tempo aterrador e maravilhoso. É um momento especial de passagem, o parto de um ciclo onde morte e vida se abraçam num espasmo de dor e plenitude. Brahma, supremo deus da criação, e Shiva, supremo deus da destruição, dançam juntos, neste instante, ao som da melodia universal que chamamos mutação. Ao olhar mais atento, Vishnu, supremo deus da conservação, sorri com os braços abertos para acolher os aflitos filhos da Vida.
Somos todos testemunhas privilegiadas, acordadas ou não, do nascimento de uma nova idade. A cada momento é possível percebermos um acréscimo de luz e de consciência à nossa volta, determinando uma espantosa aceleração de mudanças. A queda do muro de Berlim e a derrocada das ideologias representam exemplos paradigmáticos da transição conceitual, valorativa e atitudinal que transcorre nos nossos dias. E isso é apenas o inexorável princípio, uma tênue amostragem do que está por vir nesta virada para o terceiro milênio.
É preciso escolher entre dois caminhos: o do dinossauro ou o do mutante. Os resistentes à transmutação, adeptos da esclerose do passado e do conhecido, novamente serão soterrados, excluindo-se da nova civilização. Aos mutantes da consciência será destinada a herança evolutiva da humanidade.
Ser contemporâneo é o imenso desafio do nosso momento histórico. Viajamos da idade moderna para a transmoderna, da idade da razão para a idade da consciência no mais amplo sentido. Nossa tarefa é a de inventar uma nova linguagem, um novo código para o tempo-espaço do EU SOU.
Na nova idade todos somos convocados para a inteireza. O ser mutilado, fragmentado na mente, no coração e no existir, será removido para o museu do ontem. Apenas os inteiros estarão preparados para os novos desafios. Por essa razão, o termo-chave é o holístico, proveniente do grego holos, que significa inteiro, total. A palavra “holística”, pelo desgaste do mau uso e do abuso, poderá ser substituída. O seu significado, entretanto, permanecerá.
Para melhor compreender este momento crítico de passagem, voltemos nossa visão, numa rápida olhadela, para o fecundo século XVII. Nessa ocasião, mediante uma espetacular rebelião da inteligência, aconteceu, na heurística pensamentosfera europeia, o nascimento impactante da idade moderna ocidental, cujo ocaso estamos presenciando. Como sempre, foram alguns espíritos rebeldes, sensíveis às contradições da época, que se insurgiram na criação de uma nova síntese.
Um tributo de reconhecimento é necessário ser estendido aos traumatizados de todos os tempos. Aos dotados da capacidade de sentir, na própria carne, a dor coletiva da humanidade ultrajada. Final da Idade Média, quando o obscuro prevalecia e o poder religioso exercia uma despótica dominação: a objetividade reprimida pelo cânone aristotélico-tomista, o imanente esmagado pelo fator tido como transcendente, a experiência subjugada pelos dogmas dominantes, as mentes mais iluminadas silenciadas pelo terrorismo da consciência representado pela diabólica Inquisição. E no alvorecer do século XVII, por obra de videntes sensíveis e horrorizados, a revolta dos esclarecidos não pôde mais ser contida. A Revolução Científica entoou o seu iluminista brado. Galileu, antecedido pelo gênio de Copérnico, desembainhou a espada da precisão matemática, e o escudo de uma metodologia científica – hipotética dedutiva – foi erguido triunfalmente. Bacon desenvolveu a estratégia da experiência – o empirismo e o método indutivo – para derrotar a peste do dogmatismo. Descartes fez ressoar seu grito de guerra racionalista – o método analítico – iluminando, com o seu cogito discriminativo, a escuridão do campo de batalha. E Newton disparou a fatal seta da física mecânica, destinada ao coração do Caos do mundo, para ordená-lo, aprisionandoo na esfera impecável de mecanismos movidos por eternos ditames naturais.
Seguiu-se, natural e dialeticamente, a mudança de polaridade. Veio o Século das Luzes. O fator objetivo passou a ser decantado em tratados e fórmulas. A subjetividade e a dimensão do coração, consideradas não-científicas, foram proscritas, destinadas aos artistas e poetas delirantes. O fator sublime foi encarcerado em sombrios conventos, mosteiros e templos. O imperscrutável foi banido, abandonado aos místicos. A Razão estendeu o seu império por todas as plagas, com a bandeira do determinismo – biológico, econômico, geográfico, psíquico… – desfraldada. Laboriosamente os antigos traumatizados ergueram e retocaram sua obra-prima: o racionalismo científico, com elegante base disciplinar, que gerou o especialista, exótico sujeito que de quase-nada sabe quase-tudo.
E cá estamos nós, os novos traumatizados. Num mundo esfacelado, com o conhecimento fracionado em compartimentos estanques, cindidos em esferas aprisionantes, torturados por máscaras e papéis desconectados, esvaziados de um sentido maior, desvinculados da sagrada inteireza. De um extremo fomos ao outro: a Universidade, decantada como templo de saber, com um reitor tratado como Magnífico (!), onde hipertrofiamos o intelecto e nos saturamos de informações, sacrificando, no altar das disciplinas, a mente abrangente e sintética da espécie. Infelizes vítimas da patologia dissociativa crônica e paradigmática instalada no seio da crise planetária que sofremos, traduzida pelo infindável conflito intrapsíquico-interpessoal-internacional.
Uma outra revolta da inteligência, suave e irreversível, agita as suas ondas neste momento, convocando os mais sensíveis e atentos. O movimento holístico definitivamente não é uma moda, como muitos pretendem. É uma resposta biológica e vital de perpetuação da espécie perante a ameaça de uma autodestruição global; é um catalisador de transmutação no seio do qual está sendo gerado o ser humano do agora.
Ousaremos enfrentar o desafio da inteireza? Ousaremos conspirar por um ente humano integral, vinculado na dimensão interconectada do saber e do amor? Ousaremos saltar para o desconhecido, afirmando o viver evolutivo? Ousaremos não deixar por menos, reivindicando, atrevidamente, nossa condição de seres eretos, destinados a interligar terra e céu? É promissor constatar que um número progressivo de indivíduos, das mais diversas origens, culturas e ocupações, estão abrindo os olhos, despertando e conspirando pela renovação consciente de nossos horizontes. Não será um bom tempo para os insensíveis, sonolentos e pretensiosos proprietários das velhas certezas!
Um dos principais objetivos da Formação Holística de Base é cultivar um terreno fértil no qual o Aprendiz possa assimilar os conhecimentos integradamente e incorporar a nova consciência holística. É, também, contribuir na preparação de emergentes líderes holocentrados, capacitados para o enfrentamento dos novos e tremendos desafios neste surpreendente limiar do terceiro milênio.
O estudo aprofundado e minucioso deste Manual de Formação é fundamental para o envolvimento, comprometimento e desenvolvimento do Aprendiz ao longo desta fecunda jornada. A meta essencial pode resumir-se em tornar-se o que se é. Nada fácil e, assim mesmo, possível, desde que se oriente o coração para aprender.
Todas as atividades destinam-se, paradoxalmente, a um esvaziamento da mente, facilitando um vazio fértil a partir do qual a visão holística possa emanar e a canção da vida vibrar. Um Ser florescerá então e o Universo se revestirá de Sentido. Por isto, vale a pena lutar.
“Para ser grande, sê inteiro; nada teu exagera ou exclui. Sê todas as coisas. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha. Porque alta vive.” (Fernando Pessoa)
Roberto Crema