O mundo contemporâneo vive uma crise que denomino de demolição, lição do demo. Lição da fragmentação, da dissociação e da desvinculação. Por certo, necessitamos nos aprofundar no contexto crítico planetário, para compreender o sentido do que está desabando, mas também para entrever e acolher o milagre do que está desabrochando, do que está surgindo dos escombros.
Eis uma metáfora que aprecio muito, para indicar nosso momento de transição, caracterizado pela aceleração dos processos mutacionais: a lagarta já morreu e a borboleta ainda não nasceu.
Numa brevíssima e precária resenha histórica de contextualização, voltemos nossos olhos para o momento histórico, na inquieta pensamentosfera européia, que deu início à Idade Moderna, no século XVII e que depois se desdobrou através da revolução científica. Naquela ocasião, estávamos transcendendo um paradigma esclerosado, o mesmo que transcorre atualmente. Recordo que, no sentido mais amplo, como foi concebido por Thomas Kuhn, no seu livro sobre as revoluções científicas, um paradigma não é simplesmente uma filosofia, nem uma religião, nem uma ciência, nem uma arte; é uma estrutura que gera pensamentos e, portanto, gera ideologias, filosofias, ciências, artes e místicas.
O nascimento da modernidade
O paradigma medieval, que estava decadente no século XVII, era o aristotélico-tomista, uma síntese de Aristóteles com Tomás de Aquino, que prevaleceu durante séculos, tendo tido momentos maravilhosos, como o da Patrística, o dos monastérios e o da construção das catedrais. Entretanto, naquela ocasião, esta visão do mundo estava esgotada e desabando – como no momento está desabando o paradigma da modernidade – pelo peso de suas próprias contradições. Podemos sintetizar afirmando que, nos seus momentos mais obscuros, em função do dogmatismo e de uma tirania do divino, o paradigma medieval reprimia o fator objetivo e a mente analítica crítica, em nome de alguma coisa que, confusamente, era chamada de Deus. A“santa” inquisição matou mais seres humanos, proporcionalmente, do que a II Guerra Mundial, tendo se prolongado cruelmente durante séculos, sob o jugo despótico de uma religião desconectada do Espírito, que acabou se pervertendo num terrorismo consciencial, que silenciava e assassinava os seres humanos dotados das mentes mais ilustres e brilhantes, como a do Galileu. Basta lembrar de Giordano Bruno, que foi torturado e lançado numa fogueira, apenas por ousar pensar de forma lúcida e independente.
Então, precisamos levar em consideração aqueles seres humanos traumatizados por esse obscurantismo, que conspiraram por uma nova cosmovisão. Creio ser justo um elogio aos traumatizados de todos os tempos, esses seres humanos que sentem, na própria pele, a dor de uma humanidade dilacerada, insensível e esquecida de si mesma. Os mentores da idade moderna foram seres feridos por este trauma, que levantaram suas vozes, clamando por um mundo mais saudável e justo. Surge um Galileu, que vai nos introduzir no mundo da quantidade, de uma metodologia científica, hipotético-dedutiva. Atualmente, fala-se muito em qualidade, mas durante séculos ficamos fascinados com a leitura da realidade como sendo apenas aquela dos números, como denunciou tão bem René Guénon, em seu livro, O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos.
Bacon, numa época em que tudo era visto e julgado através de um livro que está na raiz da palavra biblioteca, a Bíblia, que apenas uma ínfima elite tinha acesso, diga-se de passagem, fez a revolução do empirismo, nos introduzindo aos cinco sentidos, como estratégia natural de investigação e experimentação na realidade. Bacon enfatizava o controle da natureza, com o seu famoso lema: saber é poder. Este princípio de dominação foi introduzido no cerne do pensamento moderno.
Depois, bradou sua voz aquele que é considerado o pai da razão analítica, Descartes, que partia da dúvida como método sistemático, tão traumatizado que estava pelos dogmas da época. Através do exercício de um raciocínio extraordinário, em algum momento, concluiu que precisava pensar para duvidar: penso, logo existo. O pensamento, então, passou a adquirir o estatuto de um fundamento ontológico. Surgiu, triunfante, a análise que é um método de decomposição sistemática, que busca compreender o todo por suas partes. Por outro lado, Descartes era um admirador das máquinas. Ele dizia que os filósofos apenas compreenderiam o ser humano se compreendessem as máquinas. A dimensão mecanicista, portanto, foi introduzida também no coração do novo paradigma.
Finalmente, o gênio raro de Isaac Newton, fez a magistral síntese da matematização de Galileu, do empirismo baconiano e do racionalismo analítico cartesiano, num edifício portentoso, que ele denominou de física mecânica. Newton extrapolou a metáfora da máquina para o universo, que passou a ser visto como um grande engenho, movido por leis eternas. Este modelo de Newton foi identificado com a própria ciência, durante os séculos seguintes.
Todo o movimento liberal da modernidade surgiu, de uma certa forma, para combater aquela imagem dominante de um Deus tirano, que reprimia a liberdade de pensar e de analisar. Voltaire bradava, Lembrem-se das crueldades! Assim, o racionalismo materialista científico pode ser compreendido como um movimento compensatório iluminista, de resgate da razão crítica, que culminou, no século XIX, na religião positivista de Comte, pregando o sermão do progresso, com uma pretensa física social.
Para se compreender a crise que estamos vivendo, não podemos deixar de visualizar esse surgimento do império da razão, com a magistral obra prima desses grandes mentores, que podemos denominar de racionalismo cientifico, inerentemente analítico, que inventou a disciplina que, por sua vez, engendrou o especialista, como o vidente do mínimo, o profeta do minúsculo. Saímos da fascinação pelo Todo para a veneração das partes.
Num movimento dialético, houve uma mudança de polaridade, que determinou um outro extremismo. A experiência da subjetividade, da interioridade e do sagrado, de onde jorram os valores de uma ética essencial, passou a ser reprimida em nome de algo que, de forma confusa, chamamos de ciência. O que foi um grito de inteligência, no século XVII, que conquistou a lucidez lógica e uma consciência de discriminação, no século XIX se transformou em dissociação e desvinculação. Enfim, o espírito científico, fundamentado numa indagação aberta e permanente, se degenerou em cientificismo, uma religião sem Deus! A universidade passou a ser um novo templo, com seu reitor denominado de Magnífico e seus sacerdotes travestidos de pensadores e técnicos. Naturalmente, houve uma hipertrofia da dimensão do conhecimento, sobretudo com a revolução informacional, e a correlata atrofia do universo interior, o empobrecimento lastimável do domínio subjetivo, o naufrágio do sujeito, que se degenerou em objeto.
A ditadura da razão
Em linhas muito vastas e precárias, eis como ocorreu a mudança de um pólo onde predominava uma visão sintética mística, para uma visão dominantemente analítica e objetiva, uma demência racional excludente, que Chesterton denunciou afirmando que louco é quem perdeu tudo, exceto a razão! Do obscurantismo das asas, dissociadas das raízes, passamos para o obscurantismo das raízes, desconectadas com as asas…
Os dois caminhos clássicos de apreensão da realidade, a religião e a ciência, funções que se inscrevem, metaforicamente, nos nossos hemisférios cerebrais – o esquerdo da lógica masculina racional-empírica e o direito, do coração e da intuição feminina -, foram considerados na ordem do antagonismo e da incompatibilidade. Isso levou a uma situação esquizofrênica, de ruptura entre o mundo interior e o exterior. Ou seja, perdemos de vista o que é a consciência da inteireza e o que é o fenômeno humano integral.
Como produto dessa contradição, estamos presenciando uma síndrome global, com sintomas que indicam um esgotamento criativo do paradigma da modernidade, que modelou uma atitude básica, dissociada e polarizada, perante a humanidade e o mundo. Os sinais trágicos dessa falência paradigmática são bastante visíveis nos noticiários de cada dia – a destruição dos ecossistemas, a exclusão de bilhões de seres humanos miseráveis, uma escalada de violência, terrorismos e guerras infindáveis, o abuso contra a infância – um dos mais dilacerantes sintomas, pois a criança é a guardiã do templo da dignidade e de um futuro viável – e essa falência escandalosa da ética. Enfim, um quadro de declínio e de quase fenecimento de nossa civilização.
Muito dessa discussão pode ser traduzida nas concepções de Ocidente e Oriente, compreendidas de forma transgeográfica, como estados de consciência, distintos e complementares. O Ocidente interior pode ser representado pelo hemisfério esquerdo, da tecnociência e da ação no mundo exterior. O Oriente interior pode ser simbolizado como o hemisfério direito, da mística, da musicalidade e da contemplação. Neste sentido, há uma bela sincronicidade, em português: Oriente-se! Precisamos orientar nossa ciência e tecnologia, nosso saber, por essa inteligência sintética, pelo Oriente interior, pelo hemisfério do amor. Esta integração precisa ter início dentro de cada um de nós, na ecologia individual, para que possa ser naturalmente transpirada, para a ecologia social e a ambiental.
Um novo aprender a aprender
Gosto de confiar que estamos despertando para essa premente necessidade, através do paradigma emergente, que é transdisciplinar holístico, postulando o diálogo aberto e sinérgico entre a ciência, a filosofia, a arte e a tradição espiritual.
Quando uma espécie encontra-se ameaçada na sua perpetuação, mecanismos intrínsecos, biológicos, da sua inteligência são acionados e um novo paradigma é concebido e desenvolvido, num processo orgânico e vital. É o que está acontecendo na minha percepção, em meio à agonia de um modelo racionalista e objetivista, esgotado e decadente. Trata-se de conservar o positivo da razão crítica e da ciência contemporânea, ousando abrir novos horizontes, rumo à integração dos aspectos reprimidos e negligenciados, para que transcorra uma sinergia de renovação. Entre os dois hemisférios cerebrais há uma ponte de milhões de neurônios, denominada de corpo caloso. Eis uma simbólica formidável de aliança, entre o Ocidente e o Oriente, entre o masculino e a feminino, entre a razão e o coração, a sensação e a intuição, o profano e o sagrado, a matéria e a Luz. Consciente desta solução criativa, Carl Sagan afirmava que o futuro da humanidade depende do corpo caloso.
Na abordagem holística, há um princípio que é muito valioso: não mesclar, não separar, nem fusão, nem divisão, nem “um” nem “dois”. A mescla da ciência com a religião é um equívoco alienante, um pseudosincretismo degradante. Por outro lado, considerá-las na ordem do antagonismo e da exclusão conduz a outra cilada, do sectarismo e desconexão. A ciência tem um caminho próprio, que é o analítico. A religião tem um caminho próprio, que é o sintético. Um não precisa do outro. Mas como afirmou Fritjof Capra, o ser humano necessita de ambos! São as duas pernas que um ser humano inteiro e íntegro necessita, para empreender uma jornada, com sentido e orientação.
Assim como a Idade Média enalteceu o um, da união indiferenciada do misticismo, a Idade Moderna se fundamentou no dois, da diferenciação dual, da separatividade analítica. Encontra-se em jogo, aqui, uma outra polaridade, que podemos denominar, metodologicamente, de symbolos e de diabolos. Symbolos é o fator que religa, da religiosidade e do método sintético, o um. O seu oposto é diabolos, o que divide e estabelece fronteiras, característica do método analítico, o dois. Num movimento dialético natural, o excesso de symbolos medieval nos levou a um excesso de diabolos, na modernidade. Necessitamos da virtude integrativa do três. Assim, um novo cosmo brotará do caos. Trata-se de um movimento natural da fusão para a diferenciação e desta para a Aliança, metaforizada no mencionado corpo caloso, que os antigos denominavam de Chifre do Unicórnio.
A Idade do Três
Através do paradigma transdisciplinar holístico, confio que inauguraremos a Idade do Três, através da emergência de um horizonte do saber e do ser, que transcenderá o que conhecemos convencionalmente como ciência e como religião. Creio que o futuro das novas gerações dependerá do desenvolvimento desta inteligência integral do potencial de nossa espécie. Manter o positivo do um, a união, e o positivo do dois, a diferenciação, numa metanóia de uma consciência de inteireza, onde aprenderemos a nos unir e nos diferenciar, no milagre do Encontro inclusivo, onde dançam o amante, a amada e o Amor.
Falando de um outro modo, há um denominador comum na crise contemporânea, que é o ego. Há um egocentrismo na fonte mesmo de todas as nossas contradições. Do ponto de vista psíquico, o ego representa o elemento básico e pessoal da separatividade. A crise de fragmentação tem o ego como seu suporte e agente fundamental. E não será pela lógica que inventou o problema que iremos resolvê-lo, naturalmente. Foi Carl Gustav Jung que postulou, no Ocidente, um processo iniciático, de iniciação ao mistério da totalidade, denominado de individuação: uma trilha no mundo interior que conduz a pessoa, da superficialidade egóica à centralidade do Self. Precisamos de uma visão transcendente que não é contra o ego e nem significa sua destruição, mas que poderá abri-lo para uma dimensão de solidariedade, de fraternidade e de comunhão, virtudes que emanam do hemisfério sintético.
No século XIX emergiram vários tipos de determinismos, com uma ênfase na competição e conflito. Darwin afirmava a competição entre as espécies no seu determinismo biológico. Marx postulava a competição entre as classes no seu determinismo econômico. Freud indicava a competição entre as potências psicológicas no seu determinismo psíquico… A Revolução Francesa, que representou um momento redefinidor da história ocidental, enalteceu três valores fundamentais: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. O bloco liberal-capitalista centrou-se na liberdade, o bloco social-comunista na igualdade e, ambos, menosprezaram a fraternidade, frutos que eram do mesmo paradigma materialista, racionalista, atomístico e mecanicista.
Portanto, como lograr fraternidade, num mundo dilacerado por conflitos egocêntricos? Postulando um paradigma novo, da integração, do três. Essa virtude emana da mente sintética que é o apanágio das religiões. O que significa que é impossível a sobrevivência da espécie através de um salto qualitativo de consciência sem o resgate dessa visão, dessa consciência holística, capaz de solidariedade, através da experiência da comunhão, sem perder o valor do discernimento analítico.
Por um pacto da Aliança
Gosto de falar do que considero o pacto do século XVII, entre o poder despótico da época já mencionado, o da Igreja, e os frágeis representantes do racionalismo científico, naquela ocasião vulneravelmente emergente. Que pacto é este? É tão simples que dói: os cientistas deveriam se restringir à investigação do mundo objetivo da matéria, que pode ser manipulada, quantificada, controlada e a Igreja ficaria com o mundo interior, da alma, da consciência, do Espírito! Ora, a ciência fez um bom trabalho, explorando e construindo no mundo exterior. Infelizmente, a Igreja se fragmentou além da medida, tendo prevalecido a força da instituição e da hierarquia, que subjugou a conexão com o Sopro do Mistério, que se traduz na mística do amor compassivo. É motivo de alegria e consolo constatar que, no front da ciência, da filosofia, da arte e da espiritualidade, levantam-se os novos traumatizados, na tarefa conspiratória de atualizarem este esclerosado pacto.
Considero o novo pacto a abordagem que chamamos de transdisciplinaridade, uma convocação ao exercício dialógico entre os grandes fragmentos epistemológicos da ciência, arte, filosofia e mística, buscando resgatar a unidade do conhecimento e uma forma mais integrada de agir na realidade. Um documento seminal e impactante, da UNESCO, foi a Declaração de Veneza (1986), produto de um colóquio que congregou representantes notáveis das diversas áreas do saber e do fazer, com a liderança lúcida de Basarab Nicolescu. Este texto afirma ter a ciência chegado aos seus limites, necessitando de um premente e urgente diálogo com outras formas de conhecimento. Esse documento, juntamente com a carta magna da Universidade Holística Internacional, formulada por Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e Monique Thoenig, representaram textos de base, que nos impulsionaram a realizar, em Brasília, o I Congresso Holístico Internacional, I CHI (1987), um encontro transdisciplinar formidável e definitivo, que deflagrou a criação da Fundação Cidade da Paz, mantenedora da Unipaz, hoje Rede Unipaz, que congrega dezenas de unidades no Brasil e no mundo. Este evento engendrou a Carta de Brasília, afirmando que uma nova civilização está nascendo e que uma mutação de consciência está em curso, traduzida pelo progressivo reconhecimento mundial da visão holística, que estabelece pontes sobre todas as fronteiras do conhecimento humano, resgatando o amor essencial como base da veiculação entre todos os viventes. Termina afirmando, de forma contundente: O século XXI será holístico, ou não será.
Outros documentos importantes e complementares, como a Declaração de Vancouver (1989), a Carta de Paris (1991), a Declaração de Belém (1992) e, de modo muito particular, a Carta da Trandisciplinaridade (1994), que foi gerada em Portugal, foram se somando e aprofundando este desafio tremendo, que aponta para a nova aliança, da ciência com a consciência. Merece ser destacado outro documento, formulado no Congresso de Locarno (1997), centrado no tema da evolução transdisciplinar da universidade, que postula os quatro pilares de uma nova educação: educar para conhecer, para fazer, para conviver e para Ser. Então, para que possamos aliar, através do Três, o efetivo ao afetivo, a razão ao coração, a análise à síntese, o intelecto ao espírito, o masculino ao feminino, precisamos seguir nos exercitando na estratégia da transdisciplinaridade, pois se encontra em jogo o futuro da humanidade e da própria biosfera.
Assim, nossa crise é também a da crisálida, a de uma transição consciencial, a do parto de uma nova forma de saber e de ser no mundo. Necessitamos de uma abertura para a renovação, para um salto quântico de consciência. A ciência materialista convencional, desprovida de uma visão de altitude e de uma ética de cuidado, tem sido mais um instrumento de dominação e de exclusão, sua tecnologia sendo utilizada de forma irresponsável e perversa ecologicamente, destituída das motivações mais nobres. Lembro-me de Oppenheimer, que coordenou a Operação Manhattam, que gerou a bomba atômica, quando viu esse artefato explodir Hiroshima e Nagasaki que, para ele, foi uma experiência dilaceradora. Depois de estudar ciências sociais, ele afirmou: O maior perigo da humanidade é o cientista alienado.
Com relação às contradições religiosas, podemos citar que em 2003, de acordo com Bob Walter, presidente da Fundação Joseph Campbell, presenciamos cerca de 35 guerras, das quais 33 tiveram causas religiosas. Precisamos de uma religião de fato, que honre a etimologia da própria palavra: religare. Nossa tarefa comum, como conclamava Dante Alighieri, é a de sermos Sumos Pontífices, pontes entre a terra e o céu. De outra forma, seremos cada vez mais vítimas de um certo “materialismo religioso”, uma máfia de instituições pseudo-religiosas, que movimenta bilhões de dólares, explorando a legítima fome de infinito que habita o coração, o cerne do ser humano, dominando e alienando rebanhos, através de manipulações que bem conhecemos.
Espiritualidade transreligiosa
Juntamente com a transdisciplinaridade, precisamos exercitar a transculturalidade, a convivência e o respeito às diversas culturas, com a riqueza de suas singularidades e no reconhecimento daquilo que elas têm em comum. É fundamental, também, o desenvolvimento da espiritualidade transreligiosa, que respeita todas as religiões, ao mesmo tempo que as transcendem, fundamentando-se nos valores comuns compartilhados, do amor compassivo e da fraternidade universal. Nossa ênfase, portanto, é numa espiritualidade transreligiosa, cuja essência se traduz por amor e cuja prática se encarna no exercício solidário e fraterno. Está aí a emergência de uma nova forma de ser religioso no mundo atual. Colocar ênfase não naquilo que é histórico, naquilo que é do domínio existencial e institucional e sim no transhistórico, nos valores perenes, no plano essencial.
Todas as religiões surgiram do sagrado, esse assombro perante o Mistério da Vida, que não é um latifúndio de nenhuma instituição. O sagrado é uma experiência vital e numinosa, que pode ser vivida no exercício da ciência, da filosofia, da arte e também no da religião, naturalmente. Enfim, trata-se do milagre devastador e atômico do Amor, a tecnologia sutil mais sofisticada de todos os universos. Penso em Teilhard de Chardin, que afirmava que, quem sabe, depois de dominar as forças da natureza, dos furacões, dos maremotos, quem sabe a humanidade dominará as forças do Amor. Então, pela segunda vez na história, o ser humano terá inventado o fogo…
De fato, o maior perigo da humanidade é o ser humano alienado. Sobretudo quando se trata da alienação do que é o mais propriamente humano, do Ser que viemos dar testemunho na Terra. Necessitamos de uma pedagogia do cuidado e da inteireza, que possa facilitar o florescimento total do humano.
Educação integral
O jardineiro é, talvez, a metáfora mais plena do que é um verdadeiro educador. O que faz um jardineiro? Prepara um solo fértil, banhado pela luz solar, rega-o com a água justa propiciando os nutrientes minerais apropriados e uma poda adequada a cada planta. Se o terreno é bem cuidado, a planta tem um tropismo para se desenvolve por si mesma, na direção do que realmente é. Nenhum jardineiro é tão tolo a ponto de querer ensinar uma rosa a ser uma rosa ou um jasmim a ser um jasmim. Ou, pior ainda, comparar uma rosa com um jasmim, exigindo de todas as flores o mesmo resultado, através de um mesmo currículo!…
Eis, também, a tarefa do autêntico educador: cultivar um solo propício para que o aprendiz desvele a sua palavra e revele a sua singularidade. Trata-se de apoiar e, também, de frustrar, pois os limites têm que ser aplicados, centrados no aprendiz. E jamais utilizar a técnica perversa da comparação, através de uma ética do respeito à diferença, ao semblante único de cada aprendiz. Por que um ser humano não floresceria se tivesse esse cuidado? Vale ainda afirmar que o bom jardineiro é menos o conhecedor da botânica e mais o amante da planta. Aí, estamos diante da grande pedagogia do amor, que é a primeira e a derradeira lição na escola da existência.
Como já refletimos, a proposta de uma educação integral, transdisciplinar, centra-se em quatro alvos fundamentais: por um lado, aprender a conhecer e a fazer. Por outro, aprender a conviver e a Ser. Os dois primeiros, embora de forma muito fragmentada, são considerados na educação convencional. Estas tarefas precisam ser aperfeiçoadas, para que o conhecimento seja mais unificado e a ação mais integrada e com sentido.
Aprender a conviver
O grande desafio é o de aprender a conviver – consigo mesmo, com o outro, os outros, a natureza – ou seja, viver com. Para tal, precisamos do que tenho denominado de uma alfabetização psíquica, que consiste em colocar e integrar a alma nas escolas. É o que temos feito à quase duas décadas, na Universidade Holística Internacional, Unipaz. Todos os nossos programas e projetos visam, inicialmente, à um processo de integração das quatro funções psíquicas, pesquisadas por Jung: a razão e o coração (o pensamento e o sentimento), a sensação e a intuição. O racionalismo científico é produto da articulação e dialogicidade da função da sensação – o empirismo – com a função do pensamento – o racionalismo. A grande ingenuidade desta abordagem analítica é pretender compreender a totalidade psíquica através de apenas duas de suas funções! Então, urge uma estratégia educacional que possa facilitar a cada aprendiz a identificação das funções psíquicas que são dominantes, em si, para desenvolver as que estão atrofiadas, buscando integrá-las e harmonizá-las.
Compreendo que alfabetizar a alma implica no desenvolvimento de três inteligências: a emocional, a relacional e a onírica. É fundamental um currículo através do qual o aprendiz possa aprender a expressar as emoções naturais, que são mecanismos homeostáticos imprescindíveis para a manutenção da saúde, no nível individual e coletivo. Aprender a expressar afeto, alegria, tristeza, raiva e medo é muito importante para o aprendiz não precisar substituí-las com emoções secundárias e disfuncionais, que na análise transacional são denominadas de disfarces, a exemplo da ansiedade, culpabilidade, angústia, ira, vingança, desespero, etc. Quanto à tarefa de desenvolver a inteligência relacional, gosto de lembrar de uma afirmação de Carl Rogers, um grande líder do movimento humanístico: A maior descoberta do século XX foi o grupo! Portanto, as diversas dinâmicas de grupo precisam ser introduzidas nas escolas, desde o pré-primário, para que o aprendiz possa bem se instrumentar na arte de se relacionar – consigo, com o outro e com o mundo – através do exercício do diálogo e da intimidade. Finalmente, a inteligência onírica também é indispensável, para transitarmos no universo criativo do sonhar. Sabemos que a linguagem do sonho é tão importante quanto os pensamentos de vigília, exercendo uma função compensatória, trazendo reportagens significativas da alma da pessoa, sinalizando novas direções, trazendo questões não resolvidas que precisam de atenção, podendo nos conectar com o inconsciente coletivo e cósmico. É trágico constatar como a escola convencional despreza esta dimensão tão rica e criativa, apenas por transcender a lógica racional, na qual se fundamentou o paradigma da modernidade. É como uma empresa que trabalha de dia e de noite e que apenas valoriza os produtos diurnos. Relegar as preciosidades que advém da mente onírica é, no mínimo, uma irresponsabilidade consciencial.
Aprender a Ser
Não há desafio maior, entretanto, do que educar para Ser. Para tal, necessitamos de uma pedagogia iniciática, que inicie o aprendiz a desenvolver os talentos que o Mistério lhe confiou, rumo à realização de uma plenitude possível. Uma pedagogia que facilite, por uma via interior, que o aprendiz da Vida possa, além de saber, florescer através do seu dom singular, que eu denomino de vocação, a voz mais profunda e permanente do desejo que habita cada ser humano. Voltarei a este nobre tema, pela sua importância norteadora. Neste sentido, necessitamos desenvolver uma inteligência noética, que nos abra para o silêncio, de onde toda palavra justa brota. Uma pedagogia da meditação e da contemplação, que possa abrir as portas da percepção, para o exercício de uma criatividade máxima. Neste sentido, as tradições espirituais autênticas, da sabedoria perene, podem nos auxiliar, através de seus arsenais de práticas, destinadas a abrir um olhar capaz de perceber o novo e desenvolver o poder da intuição, inteligência global que captura o coração do instante. Além do caminho analítico, que acumula conhecimentos de forma progressiva, necessitamos da via sintética, capaz de não saber, esta virtude preciosa da douta ignorância. Ser capaz de se esvaziar do conhecido, das memórias que nos soterram no passado, para viabilizar um processo de recriação e de renovação permanentes. É preciso lograr a profundidade e altitude do Ser, para que sejamos sujeitos do próprio destino. Diz a sabedoria dos Upanichads: O que for a profundeza do teu ser, assim será o teu desejo. O que for o teu desejo, assim será a tua vontade. O que for a tua vontade, assim serão teus atos. O que forem teus atos, assim será o teu destino.
Enfim, não se estagnar e permitir o processo, o devir, é característica da existência criativa e plena. Afirma o poeta Pessoa: A vida é breve, a alma é vasta. Ter é tardar. Ora, se ter é tardar, Ser é partir…
Desenvolvimento e cosmovisão
Quando falamos do desenvolvimento, do que estamos falando, afinal? Para que possamos compreender os diversos sentidos desta palavra, necessitamos esclarecer nossos pressupostos antropológicos, ou seja, a visão que postulamos do humano e do mundo, nossa cosmovisão. Pois esta visão modela nossa atitude perante o humano e o universo, determinando o que compreendemos como desenvolvimento, como educação, como evolução… Inspirando-me em Jean-Yves Leloup, há quatro pressupostos antropológicos. O primeiro é o materialista: o ser humano é apenas um corpo dotado de um cérebro; é um macaco nu. Desenvolvimento, nesta visão, se resumirá na questão da prosperidade material, ou seja, desenvolvimento econômico. Esta é a visão mais superficial deste enfoque e, infelizmente, o que prevalece no mundo materialista contemporâneo. Por esta razão, consideramos que um país desenvolvido é o que tem uma economia forte, um PIB de natureza exclusiva material. É importante aprofundar e complexificar esta avaliação.
O segundo pressuposto é o psicossomático: o ser humano é um corpo dotado de informações, de alma. Neste caso, desenvolvimento não é só material; é também o da alma, da qualidade de pensamentos, de emoções, de sonhos, de relacionamentos, da subjetividade e intersubjetividade. Para lograr este desenvolvimento, necessitamos de uma alfabetização psíquica, no marco de uma educação integral, acima indicada. Neste caso, um país pode ter uma economia fraca e uma alma próspera enquanto outro pode ter uma economia forte e uma alma miserável…
O terceiro pressuposto é trinitário: o ser humano é um composto de corpo, de alma e de nous, que podemos traduzir por consciência pura, sem objeto, metaconsciência, a ponta acerada da alma. O ser humano é dotado de uma qualidade ímpar, a da consciência da consciência. Dizia Mestre Eckart: O Espírito é mais próximo a mim do que meu hálito. O mesmo é verdade para as pedras e plantas. Só que elas não sabem disso!… A dimensão noética é constituída de silêncio e de imagens estruturantes, arquétipos da alma profunda; é a nossa mente contemplativa, capaz de quietude e de paz, aberta ao essencial, de onde emanam os valores éticos perenes. Desenvolvimento noético é logrado através de uma pedagogia meditativa, aberta à dimensão essencial e do que denominamos de imaginal, o universo arquetípico que estrutura a alma e a existência, conforme delineamos resumidamente acima.
O quarto pressuposto afirma que o ser humano é um composto de dimensões: do corpo, da alma e da consciência, atravessado pelo Mistério da Vida, pelo Espírito, que os estruturam e vitalizam. Aqui, a dimensão essencial é levada em consideração e valorizada como o que permanece na impermanência de tudo, o Ser Que É no coração do ser que passa. A dimensão noética, da consciência, é a única que, por ser constituída de silêncio e de uma abertura ao essencial, pode refletir a Luz do Espírito. Portanto, não há desenvolvimento espiritual; só se desenvolve o que tem um início e terá um fim. O que podemos desenvolver é o corpo, a alma e a consciência, para que a Essência possa se manifestar na existência, para que o Absoluto possa dar um sentido e direção ao relativo. Na minha leitura, Cristo indicou esta realidade quando afirmou que o Espírito está pronto, a carne é fraca. Não há desenvolvimento do Espírito; há um despertar para o Ser, para a Vida.
Considero importante diferenciar existência de Vida. Existência é uma manifestação e exteriorização provisória da Vida, que é Absoluto, Espírito. Certa ocasião Buda indagou aos seus discípulos o que era o oposto da morte. Todos responderam: a vida. Buda corrigiu: O oposto da morte é o nascimento, pois a Vida é eterna. E Cristo também afirmava trazer Vida, Vida em abundância. Está lá no preâmbulo do João: No princípio: o Logos, o Logos está voltado para Deus, o Logos é Deus. …Ele é a vida de todo ser, a vida é a luz dos homens. Ele está no mundo, o mundo existe por meio dele, mas o mundo não o conhece. …E o Logos se fez carne e fez sua morada entre nós… A grande tragédia é que estamos sendo fanáticos da existência e tombamos ao largo da Vida, do Mistério que realmente somos! Quando alguém faz aniversário, desejamos-lhe muitos anos de existência. Quando aprenderemos a desejar muita Vida nos anos? Não importa muito se viveremos alguns anos a mais ou a menos. O que importa é que haja Vida em nossos passos, a chama do Amor em nossos dias.
É um fato auspicioso o tanto que se fala, atualmente, de Qualidade de Vida. Já falamos muito de quantidade, nos últimos séculos. Para se auferir quantidade, basta uma máquina, um computador. Para se verificar qualidade é necessário um sujeito, uma alma, uma consciência. É pela conexão com a Vida que a nossa existência adquire centralidade, sentido e orientação.
Dimensões do cuidado
Eis, portanto, as três dimensões suscetíveis de desenvolvimento no ser humano: o corpo, que corresponde ao aspecto econômico; a alma, relativa ao aspecto político, do poder psíquico; e a consciência noética, relativa ao universo da ética e da sabedoria, o alvo mais elevado de um desenvolvimento integral, segundo a filosofia perene. Para desenvolver esta virtude, as tradições sapienciais nos oferecem seus caminhos para o despertar. O cristianismo, através da contemplação, oração, e evocação do Nome; o hinduísmo, com suas diversas yogas, o budismo com o seu leque de vias meditativas, o sufismo com a dança dos dervixes, o taoísmo com a meditação ativa das artes marciais que surgiram em templos, o xamanismo com suas artes do sagrado… Na pedagogia da Unipaz, denominamos de holopráxis a estas diversas vias para o despertar da Presença.
É necessário questionar essa falácia do progresso, tão decantada por Comte no século XIX. Para Comte, considerado o fundador da sociologia, há uma lei dos três estados, na história do conhecimento humano: a teologia representa o primeiro estágio infantil; a metafísica, seria de transição para o positivo, a maturidade, período científico definitivo. O seu positivismo, postulado como uma religião, pregava a ordem e o progresso, fundamentado na física mecânica, com seus dois capítulos básicos: o da estática (ordem) e o da dinâmica (progresso). Tal ideologia acabou contaminando nossa República e estampada em nossa bandeira nacional, que passou a ser um instrumento de propaganda do lema básico positivista – Ordem e Progresso. Penso que o povo brasileiro, com seu grande coração, é maior do que esta bandeira, que precisa ser atualizada com uma dimensão quântica, aliada à mecânica. Ordem e Progresso são valores fundamentais, de uma razão analítica; precisam ser conservados. Como não há tempo a perder, sugiro adicionar outras duas virtudes, do universo feminino, no hemisfério sintético de nossa bandeira: Amor e Solidariedade. Porque, bem sabemos, sem o amor compassivo a ordem pode se degenerar em ditadura e o progresso em exclusão e dominação. Novamente, trata-se de nos atrevermos a realizar a arte da Aliança, para que a tecnociência esteja a serviço de uma ética do coração e do bem comum.
Sobretudo depois do fatídico 11 de Setembro, as pessoas conscientes estão se perguntando: o que é um país desenvolvido?; o que é uma pessoa educada?; o que é, realmente, progresso?…
Enfim, essencialmente o que é o desenvolvimento, se não a possibilidade de dar continuidade ao processo da holocriação? Co-criar: é isso que o Mistério nos brindou como oportunidade suprema na Arte do Encontro, pura alquimia de transmutação. Considero uma bela e portentosa utopia a que consta como terceiro princípio de um documento muito lúcido e impactante, denominado de Europa de Consciências, que surgiu de um movimento impulsionado por eminentes humanistas, liderado por Abé Pierre, na França, denunciando as contradições catastróficas de um materialismo onipresente, organizado e global: Submeter o econômico ao político e o político à sabedoria. Em outras palavras, o fator material econômico precisa ser conduzido pelo político psíquico e este pela sabedoria ética da consciência noética. Mãos à Obra Prima?!…
O Projeto Humano é vasto; somos um espaço onde o próprio Universo pode tomar consciência de si, saborear-se, saber-se, sorrir… A missão humana é a do Pontifex, a de uma ponte entre o infra-humano e o supra-humano. Recapitulamos todos os Reinos: há em nós o reino mineral – ossos e dentes, nossa dimensão adâmica de argila -, o vegetal – o sistema vegetativo, a flora intestinal, as plantas dos pés – o animal – os instintos, a libido. Há também o reino angelical – o Aleluia, este Louvor ao Ser que É – o arcangelical – chama ardente da compaixão, uma sabedoria maior que nossa razão – e o Reino da Luz. Todos se aliam num coração humano capaz de abertura, de doação, de Amor incondicional. Desenvolver este potencial, que os antigos denominavam de Anthropos, a inteireza humana, eis o maior desafio dos séculos vindouros!
Além do ego
Importa insistir que a questão do desenvolvimento é de natureza existencial; precisamos cuidar daquilo que teve início em nós e que, um dia, findará. O Espírito Incriado sempre esteve, está e estará no coração diamantino da Essência Humana. Como pode se desenvolver o que jamais teve início, o que jamais findará? Trata-se, então, de desenvolver o existencial para que o Essencial possa se manifestar nos meandros tortuosos do existir humano. O que precisamos desenvolver é a dimensão corporal, a dimensão psíquica e a dimensão noética ou consciencial profunda de onde uma ética do coração jorra, naturalmente, se aí lograrmos evolução e qualidade. Para tal, é necessária a disciplina da ascese, de um trabalho no cotidiano sobre si mesmo, de um investimento na exploração e edificação do cosmo interior. Quando a nossa mente se esvazia a nossa taça de plenitude transborda!… O futuro da humanidade depende do resgate de uma mística natural, de comunhão, participação, vinculação. Toda injustiça e exclusão é produto da ilusão de separatividade, determinada pela clausura e prisão do ego, fonte de toda guerra, interior e exterior. A questão crucial de um desenvolvimento integral é a de lograr que o ego seja orientado pelo Ser que nos faz ser…
Penso numa passagem de Alexandre, o Grande, quando esteve no deserto com Diógenes, um grande sábio. Alexandre, que foi preparado por um bom mestre, o Aristóteles, e sabia reconhecer um homem digno, disse ao Diógenes: – Peça-me o que quiser que eu lhe darei. E o sábio respondeu: – Apenas se afaste, pois você está tapando o sol!… Gosto desta estória como uma boa metáfora a nos indicar que a tarefa suprema é a de afastar Alexandre, o Grande, ou seja, o ego desmesurado, para que a Luz do Sol da Essência possa nos aquecer, iluminar e redimir.
O Sol do Ser sempre está presente, mesmo nos dias mais nublados. Nossa tarefa é a de afastar as nuvens das enfermidades e sintomas do corpo, as nuvens das inclinações indevidas, ferimentos e traumas da alma e as nuvens da ignorância existencial da consciência, que nos impede de refletir o que está aí desde todo o sempre e para sempre – o Alfa e o Ômega, o Infinito Eterno.
Não há desenvolvimento consistente sem autodesenvolvimento. O tema da evolução é imperativo na questão humana. Pois não nascemos humanos; nós nos tornamos humanos, através de um investimento sistemático em nós mesmos, não apenas no plano material; sobretudo na esfera da subjetividade, da alma e da consciência. Já afirmava um grande mestre da Excelência Humana, há dois milênios: De que vale você ganhar o mundo inteiro se você perdeu a sua alma; se você não sabe quem você é, de onde você vem, para onde você vai?…
Metaprincípios para um desenvolvimento integral
Quero concluir apontando para alguns metaprincípios, princípios de princípios, que considero fundamentais na arte da transformação e da auto-realização. Considero-os chaves preciosas no processo de cura e de individuação, rumo à saúde e plenitude, que trinta anos de exercício terapêutico me ensinaram.
O primeiro metaprincípio fala de uma metapatologia, uma patologia existente em todas as patologias: existe uma fonte comum a todo sofrimento humano que é o apego, compreendido como uma identificação – com um objeto, um valor, um desejo, uma pessoa, um status… Desde que você se identifique com algo, você sentirá medo de perder, pois tudo está em mutação, e o stress se seguirá ao temor. Pierre Weil resumiu, em palavras modernas, este metaprincípio da sabedoria perene, através de um esquema claro e simples: O apego leva ao medo, que conduz ao stress e a todas essas enfermidades da civilização que são tão bem conhecidas: Apego – Medo – Stress. Na realidade, o apego é derivado do que Weil denominou de fantasia da separatividade: como nos sentimos separados do todo, num movimento compensatório, nos apegamos; como se os apegos representassem tábuas de salvação. Neste circuito vicioso nos perdemos numa equação singela, de fácil constatação: quanto mais apegos, mais sofrimento. Querer desapegar-se é uma outra forma de apego, mais sutil. Qual a saída?
Encontramos a saída através do segundo metaprincípio, que aponta para uma meta-terapia, um princípio terapêutico inerente a todo processo terapêutico: a plena atenção, que se traduz por Presença, estar conectado ao instante. Existe uma pequena atenção, quando há uma concentração em algum aspecto da realidade, o que implica em resistir a todas as demais estimulações. A plena atenção é derivada da qualidade noética, consciência da consciência. O que Krishnamurti denominava de atenção sem escolha, um estado aberto e inclusivo de vigília. Toda transformação expressa esta conexão com o aqui-e-agora, o que caracteriza a saúde plena. Uma pessoa saudável não é uma pessoa que não tem problemas; é uma pessoa que está atenta, a cada instante, aos problemas e às maravilhas do existir. É uma atenção sem foco específico, um estado meditativo, sem tensão, sem concentração. A patologia emana da desatenção. A plena atenção é uma função natural do despertar da kundalini, de acordo com psicologia hindu. A palavra Buda deriva do sânscrito bodh, que significa desperto. Buda, portanto, é aquele que despertou plenamente para o real, que é o agora, o instante que nos nutre de tudo o que necessitamos. É através da plena atenção aos apegos que se torna possível transcendê-los. Neste estado de atenção pura, deixamos de ser possuídos pela ilusão do passado e ficção do futuro, aptos a uma responsabilidade, uma habilidade de responder ao agora. Eis um sermão de sabedoria crística: Vigiai e orai!
Ao terceiro metaprincípio de um desenvolvimento integral, denomino de círculo da aceitação. O movimento de aceitação, de modo algum implica em passividade ou acomodação. Pelo contrário; aceitar é uma qualidade dinâmica, quando nos fazemos não duais com a realidade e, nesta inteireza, somos plenificados de energias, o que possibilita a transformação ou superação do obstáculo em questão. Nós apenas mudamos aquilo que aceitamos, num primeiro momento. Quando não aceitamos algum aspecto da realidade, seja interna ou externa, nós nos dividimos – entre o ideal e o real – o que nos leva a uma dispersão energética. Sem energia não é possível a transformação. Assim, a não aceitação nos leva a um esgotamento energético, que nos encerra no círculo vicioso da estagnação. O alinhamento lúcido com a realidade é o que nos possibilita sua transcendência. Eis a força do que Mahatma Gandhi afirmava ser o resumo de todas as orações: Seja feita a vossa vontade. Este processo virtuoso pode ser assim resumido: eu me alinho com a realidade para estar inteiro e com a energia advinda desta integridade, posso atirar-me no processo de transmutação da própria realidade. Falando de um outro modo, há três tipos de pessoas que querem transformar o mundo: o rebelde, o revolucionário e o conspirador. O rebelde é alguém imaturo, que tem problemas não resolvidos com as autoridades, com o papai e mamãe no interior de si mesmo, projetando-os no exterior, sendo sempre do contra; em suma, é uma pessoa que necessita de psicoterapia. O revolucionário já é uma pessoa com maturidade, que faz a crítica das contradições sistêmicas e postula uma ideologia que considera mais justa. Entretanto, há sempre uma arrogância nesta atitude de querer mudar o mundo, sem antes ter se transformado. Em função disto é que presenciamos praticamente a derrocada de todas as revoluções. Finalmente, o conspirador é a pessoa que fez a revolução no interior de si mesmo, trabalhando com o ditador no seu próprio coração, dando um testemunho de autotransformação, naturalmente tornando-se um facilitador da transformação social e ambiental. O conspirador é aquele conhecedor de si, que se deu conta que é um pedacinho de praça pública e caso queira ser agente de qualidade, de desenvolvimento no mundo, ele tem que começar por este pedacinho de universo que lhe foi confiado. Este é o líder capaz de aceitação de si, do outro e da realidade, assumindo um autêntico papel de agente de transformação. O autoconhecimento para o qual nos convocavam Sócrates, e todos os grandes mestres, é a única forma de prevenir a humanidade das guerras, dos genocídios e das grandes tragédias. Porque somente mata o outro, somente viola e exclui aquele que não se conhece, porque se conhecer é se conhecer na relação, na vinculação com o outro e com o Totalmente Outro, o Mistério que, reconhecido ou não, sempre está presente.
O quarto metaprincípio, é o da vocação. É o que traduzo afirmando que somos filhos de uma promessa que nos fizemos, de um juramento sagrado. Encarnamos para realizar uma obra prima individual e intransferível, com os talentos que a Vida nos brinda, sobre medida. Quando me esqueço e me afasto da vocação, vou atrair problemas, atrair doenças, que podem ser compreendidas como denúncias de contradições e de desvios. A grande tarefa evolutiva é a pessoa se lembrar da sua própria promessa, fazendo jus aos talentos que recebeu e que precisa fazer render na existência. Considero a parábola dos talentos indicativa deste metaprincípio fundamental. O normótico – alguém que sofre da patologia da normalidade, adaptando-se a um contexto doente e não cultivando seu potencial evolutivo – é aquele que enterra os talentos recebidos, com medo do seu próprio florescimento, de sua capacidade de realização, de amar e de servir. Jonas, do Antigo Testamento, representa o arquétipo desta normose, que atrai tempestades quando foge da própria missão. Por outro lado, sempre que nos aproximamos do caminho da promessa, da trilha com coração, o Mistério conspira por nós, enviando-nos tudo o que necessitamos, para florescer a partir do solo fecundo de nossos talentos. Considero a questão vocacional um dos maiores desafios, que poderá nos levar a transcender a polaridade insuficiente do especialista e do generalista, tarefas que os computadores poderão assumir por nós.
Finalmente, o quinto metaprincípio é o do serviço, o viço do Ser, que expressa a suprema Lei do Amor, esse amor de onde viemos e para onde retornaremos, já que estamos condenados a amar. A existência é uma escola para onde viemos aprender a amar e a servir a partir de uma vocação particular. Não há forma de servir mais excelente do que você se tornar quem você realmente é. Eis um poema altaneiro do grande Tagore: Oh amigo meu, amiga minha, meu coração está angustiado pelo peso de todos os tesouros, que não entreguei a ti. O que nos pesa é o que retemos, o que não ofertamos. Na realidade, apenas temos o que oferecemos, o que servimos, que nenhum ladrão e nem mesmo a morte poderá nos roubar. Eis o epitáfio que gostaria, quem sabe um dia, merecer: Confesso que servi.
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*Capítulo do livro, Ciência, Religião e Desenvolvimento – Perspectivas para o Brasil; IRADJ, Roberto Eghrari (Org.).
www.cienciaereligiao.org.br
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