“A doença do homem normal é uma doença da imobilidade. Saber mover a mente é contribuir para superar esta enfermidade. ”

Guillaume Le Blanc[1]

Na perspectiva holocentrada, é imperativo denunciar o que Jean-Yves Leloup, Pierre Weil e este autor denominamos de normose, uma patologia da normalidade[2] que se traduz por um conjunto de comportamentos, atitudes e hábitos dotados de consenso social e patogênicos em diversos graus de gravidade.

Pierre Weil afirma que uma grande parte das opiniões, das atitudes e dos comportamentos sobre os quais recai um consenso social, na realidade conformam tipos de normoses. Este consenso constitui uma pressão social que modela um processo de adaptação a normas mórbidas. Um exemplo é o conceito de guerra justa, com um apoio legal, onde as pessoas envolvidas adquirem o direito de matar os que consideram inimigos. Neste contexto, aprende-se a matar por meio do serviço militar, às vezes obrigatório. Um consenso análogo a este existia, antigamente, em torno do duelo, como um caminho legítimo de lavar a honra ferida. Atualmente essa prática é considerada ilegal, inconcebível e, até mesmo, ridícula. “Quando a guerra será considerada como um duelo coletivo? ”, indaga Pierre Weil.

Jean-Yves Leloup[3] aponta para o arquétipo de Jonas e a sua fuga de si mesmo como uma força de inércia que caracteriza a normose: fobia do despertar, temor da própria grandeza, medo de Ser. Retornaremos a esta fundamental questão no final deste artigo.

Na minha abordagem[4] há três fundamentos da normose. O primeiro é o sistêmico: esta anomalia da normalidade surge quando o sistema no qual vivemos encontra-se, dominantemente, desequilibrado, doente e corrompido, quando o que predomina são as contradições ou sintomas como a falta de escuta, de respeito, de cuidado e de fraternidade, com uma violência alarmante e crescente contra o indivíduo, a sociedade e a natureza. Neste contexto, uma pessoa normal, ou melhor, normótica, é a bem ajustada ao sistema mórbido, assim contribuindo para a manutenção do status quo. Sabemos bem, pela própria carta constitutiva da Organização Mundial de Saúde (1946), que a saúde não é ausência de sintomas, mas a presença de um processo completo de bem-estar nos planos somático, psíquico e social. O fator ambiental e o espiritual foram considerados e incluídos neste conceito, mais tarde (1998). Em outras palavras, quando um sistema se encontra num estado patológico em larga medida, a pessoa realmente em boa saúde é aquela capaz de manifestar um estado de desajustamento consciente, de uma indignação justa, de um desespero sóbrio.

             O segundo fundamento é o evolutivo, que indica a necessidade de um investimento sistemático no potencial de autodesenvolvimento, de maturidade e de uma plenitude possível ao humano, através da ousadia imperativa de transcender os trilhos normóticos rumo às trilhas iniciáticas: tornar-se humano. Em outras palavras, o ser humano introduziu outra ordem de complexidade e de qualidade intencional, consciente e voluntária no processo evolucionário. Além dos acasos e das necessidades, das mutações genéticas aleatórias e dos combates entre os mais aptos, segundo a seleção natural darwiniana, a evolução humana consiste no desenvolvimento da consciência, que solicita um trabalho sobre si mesmo nas trilhas labirínticas evolutivas do processo de individuação.

Esta nova qualidade de uma evolução cultural, muito além da biológica, através de um intento consciente e responsável, característica ímpar do ser humano, é sustentada por significativas cartografias da consciência contemporâneas, em ressonância com as tradições iniciáticas milenares. É o que encontramos nas pesquisas de Abraham Maslow[5], de Carl Rogers[6], de Stanislav Grof[7] e de Ken Wilber[8], citando apenas alguns poucos marcantes representantes do movimento humanista e transpessoal da ciência psíquica. Também são muito significativas as pesquisas de Teilhard de Chardin sobre a evolução do Fenômeno Humano, juntamente com as obras do Sri Aurobindo, de Gurdjieff e de Graf-Dürckheim, criador da terapia iniciática.

Na sua impactante obra, “L’évolution créatrice”, Henri Bergson[9] postula um processo evolutivo vital e livre, opondo-se ao finalismo e à predestinação, como também à abordagem mecanicista do evolucionismo darwiniano, que é incapaz, segundo este filósofo, de explicar a totalidade complexa da evolução da vida. Para Bergson, como para Ervin Laszlo[10], a teoria de Darwin não teve sucesso em explicar a origem das espécies complexas.

Edgar Morin[11], que defende um aspecto meta-natural do humano, afirma que a hominização nos conduziu a um novo começo: o hominídeo se humaniza e assim o conceito do humano adquire um duplo princípio, biofísico e psico-socio-cultural, ligados dialeticamente.  Para este filósofo, nós nos desenvolvemos para além da realidade física e viva; é precisamente neste além que se localiza a plenitude humana. O conceito de normose encontra-se em ressonância com certas reflexões de Morin[12], sobretudo quando analisa as cegueiras do conhecimento e indica a força normalizadora do dogma, do tabu e do determinismo das convicções e crenças, dos conformismos cognitivos e intelectuais.

Por outro lado, com relação ao tema evolutivo, Basarab Nicolescu[13] sustenta que a nossa evolução é uma autotranscedência e que ninguém nem nada pode nos obrigar a evoluir, já que as forças naturais da natureza, que determinaram a evolução biológica humana, não atuam mais, o que levou a evolução biológica ao seu final. No seu lugar surgiu um novo tipo de evolução, ligado à cultura, à ciência, à consciência e ao encontro humano. Neste sentido, a normose se caracteriza por uma ausência de investimento no potencial psíquico, ético e noético, ou seja, por um estado de estagnação da evolução consciente, propriamente humana.

O terceiro fundamento é o paradigmático, tal como concebido num sentido mais vasto, por Thomas Kuhn[14]. Neste caso, a normose surge quando o paradigma que ainda prevalece encontra-se esgotado no seu potencial criativo e, até certo ponto, esclerosado, sendo que o paradigma emergente é postulado por um grupo minoritário. Como afirmava Max Planck, segundo Kuhn, uma nova verdade científica não triunfa pelo convencimento dos seus oponentes, facilitando que vejam as novas luzes, mas porque, simplesmente, eles morrem. Assim, de enterro a enterro e de nascimento a nascimento uma nova geração se desenvolve, aberta e receptiva ao novo aprender a aprender. Encontra-se aqui em jogo a nobreza indicada por esta paradoxal e feliz expressão de Henry Thoreau[15], a maioria de um.

 Falando a respeito das doenças do ser humano normal, Le Blanc[16] afirma que a normalidade é, no início, uma criança na qual o sonho de ar fresco é levado em conta pelos julgamentos dos pais e dos adultos, sendo que os seus desejos e a sua vida psíquica são construídos neste estado de sujeição e de modelagem. Considerando que a personalização é um processo de fornecer um sentido às nossas atividades, Le Blanc postula que falar de um ser humano normal é precisamente encerrá-lo nas clausuras de uma identidade definitiva, que o priva de toda a possibilidade de alteridade. Neste sentido, o horror da doença é o grande temor da novidade, quando a angústia se torna o modo de ser da pessoa considerada normal. Para este autor, a normalidade se apresenta como exemplaridade ou como uma suposta saúde que termina na prisão a uma norma única, que expõe a pessoa a todas as enfermidades possíveis.

Enfim, inicialmente parafraseando Frederick Perls para ousar muito além, de forma tosca e apenas ludicamente indicativa podemos afirmar que o psicótico é quem diz: Eu sou Napoleão Bonaparte. O neurótico diz: Eu gostaria de ser Napoleão Bonaparte. O normótico diz: Quem sou eu para ser Napoleão Bonaparte? A pessoa saudável diz: Eu sou eu, você é você. O iniciado nas trilhas do florescimento diz, evocando o poeta Jiménez[17]: Eu não sou eu. Sou este que caminha ao meu lado sem eu vê-lo; que, por vezes, vou visitar, e que, às vezes esqueço. O que cala, sereno, quando odeio, o que passeia por onde estou ausente, o que estará de pé quando eu estiver morrendo. 

O Complexo de Jonas

A dimensão emancipadora decorre, naturalmente, do processo da autoconstrução rumo a uma diferenciação e a consciência de alteridade. Entretanto, o desafio da pessoa vir-a-ser artesã da própria existência é uma verdadeira tarefa maior, que implica em superar certo número de obstáculos, como o medo de caminhar rumo ao desconhecido, com a perda dos referenciais habituais. Tornar-se pleno implica sempre a necessidade de lutar contra as resistências do mundo intrapsíquico, a autoridade interior que zela pelo status quo em cumplicidade com o universo relacional, construído segundo os padrões introjetados.

Em outras palavras, ao lado de uma estagnação do desejo evolutivo, um aspecto muito importante da normose é o medo da individualidade ou da individuação, ou seja, o temor da pessoa tornar-se um sujeito único, dotada de um semblante particular e capaz de contar a sua história, assumindo-se como o autor e ator da própria existência. Abraham Maslow[18] denominou de complexo de Jonas a um tipo de resistência que impede o processo de desenvolvimento e de autorrealização individual. Trata-se de uma compulsiva recusa de crescer e de explorar os próprios talentos, um tipo de temor da altitude, da amplidão e da realeza do potencial humano.

O arquétipo de Jonas, personagem do Antigo Testamento, fala de um homem que recusa escutar e seguir a voz da sua própria consciência profunda, que lhe convoca a abandonar o conforto da sua existência tranquila, para realizar uma missão numa grande cidade. Jonas – nome hebraico que significa pomba das asas cortadas – é um homem totalmente ordinário, que prefere seguir na sua pequena e rotineira existência, quando uma tempestade surge no seu caminho de fuga, o que o conduzirá a um mergulho até o ventre de um grande peixe. Em síntese, Jonas simboliza o medo do ser humano de se tornar inteiro, autêntico e verdadeiro, que o conduz à fuga da própria missão ou destinação. Este complexo se traduz no arraigado medo da diferenciação, do assumir o próprio semblante original, ou seja, o temor da autorrealização. A tempestade que atravessa o seu caminho pode significar os sintomas, as doenças e os infortúnios que a pessoa atrai, quando foge de si mesma. É, também, uma oportunidade de despertar para colocar-se num caminho criativo de transformação, rumo à plenitude.

Jean-Yves Leloup[19] na sua extraordinária obra, Caminhos da Realização, realiza uma interpretação impecável e vasta do tema do complexo de Jonas, como um caminho em direção ao despertar transpessoal, a partir de um amplo mapa dos medos do ego de nosso psiquismo pessoal. Leloup afirma que Jonas se encontra no interior de cada ser humano, como o próprio arquétipo da normose, uma força de impedimento que atua quando recebemos o convite para despertarmos do sono banal de uma existência sem sentido. A sua profunda leitura simbólica da trajetória de Jonas é uma indicação e inspiração para a aventura heroica da realização missionária ou vocacional, longo processo de florescimento de nossos talentos naturais e singulares.

Por outro lado, falando do problema de Jonas com relação à tensão entre o trágico e o trivial, Arthur Koestler[20] afirma que o simples mortal passa praticamente toda a sua existência no plano banal, exceto em algumas ocasiões excepcionais, como durante as turbulências da puberdade ou numa aventura passional ou no confronto com a morte, quando acontece a súbita queda no abismo do trágico. Para Koestler, a força dos hábitos e das convenções nos aprisiona nas correntes quase imperceptíveis do fator trivial, esta dinâmica transcorrendo no nível subconsciente. “São as normas coletivas, os códigos de conduta, as matrizes axiomáticas que determinam as regras do jogo e nos fazem avançar quase todos, quase sempre, nos traços do hábito, reduzindo-nos ao estado de autômatos bem vestidos, que os behavioristas apresentam como a verdadeira condição do ser humano”, sustenta o autor, esboçando um resumo muito perspicaz da normose.

O que nos evoca os heróis da mitologia universal é o percurso iniciático indispensável em direção a uma plena realização do potencial humano. Lúcida coragem de transgredir a enfermidade do trivial e da mediocridade, ou seja, a normose. Confrontar-se e ousar um voo além da normose é imprescindível e representa o desafio árduo da aventura evolutiva, no processo iniciático do indivíduo assumir a condição de autoria, como sujeito da própria existência.

[1] Le Blanc G., Les maladies de l’homme normal, VRIN Matière Étrangère, Paris, Librairie

Philosophique J. VRIN, 2007.

[2] Weil, Pierre; Leloup, Jean-Yves; Crema, Roberto. Normose, a patologia da normalidade. Campinas: Verus, 2003; Petrópolis: Vozes, 2011.

[3] Leloup, J-Y. Normose e o medo de ser. In: Weil P.; Leloup J-Y; Crema R., Normose, a patologia da normalidade. Campinas: Verus, 2003; Petrópolis: Vozes, 2012.

[4] Crema R., Três fundamentos da normose, In: Weil P.; Leloup J-Y; Crema R., Normose, a

patologia da normalidade. Campinas: Verus, 2003; Petrópolis: Vozes, 2012.

[5] Maslow A., Vers une psychologie de l’être, Paris, Fayard, 1972.

[6] Rogers C., On Becoming a Person, A therapist’s view of Psychoterapy, Boston-New York,

Houghton Miffllin Company, 1995.

[7] Grof S., Pour une psychologie du future, Paris, Dervy, 2002.

[8] Wilber K., O espectro da consciência, São Paulo, Cultrix, 1990.

[9] Bergson H., L’évolution créatrice, Paris, QUADRIGE/PUF, 2009.

[10] Laszlo E., Conexão Cósmica, Petrópolis, Vozes, 1999.

[11] Morin E., Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro, São Paulo, Cortez Editora,

Brasília, UNESCO, 2002.

[12] Morin E., op. cit.

[13] Nicolescu B., op. cit.

[14] Kuhn T., La structure des Révolutions Scientifiques, Paris, Flammarion, 2008.

[15] Thoreau H. D., Walden ou la vie dans le bois, Paris, Flammarion, 1990.

[16] Le Blanc G., op. cit.

[17] Jiménez, J. R. Antologia poética. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.

[18] Maslow A. H., Vers une psychologie de l’être, Paris, Fayard, 1972.

[19] Leloup J-Y., Caminhos da Realização – Dos medos do eu ao mergulho no Ser, Petrópolis,

Vozes, 1996.

[20] Koestler A., La quête de l’absolu, Commentaires d’Arthur Koestler traduits par George

Fradier et Muriel Zygband, Paris, Calmann-Lévy, 1981.