Ele é autor e coautor de 30 livros, tem 40 anos como psicoterapeuta e três décadas dedicadas à Universidade Internacional da Paz (Unipaz). Roberto Crema vem a Belo Horizonte para lançar o livro “O Poder do Encontro”, em que trata da quinta força em terapia, que integra a dimensão infra-humana e a transumana no coração do ser.

Refletindo acerca da crise moral e ética que assola a humanidade, gostaria que você comentasse a sua frase: “O ser humano será a maior descoberta do século XXI. Caso contrário, haverá século XXI para o ser humano?”.

Nos últimos séculos temos investido intensa e quase exclusivamente no mundo da matéria, a partir do materialismo vigente e implícito no racionalismo científico. Os frutos desse empenho são maravilhosos: nossa formidável e sofisticada tecnociência, viagens espaciais, universo virtual e revolução informacional. Entretanto, não houve um investimento correspondente no mundo da interioridade, da intersubjetividade, no campo psíquico e no universo da consciência. Sofremos do que tenho denominado de “um analfabetismo psíquico” e de uma miséria consciencial que se encontra na base mesma da falência da ética contemporânea. Desenvolvemos uma hipertrofia de informações e de conhecimentos de acesso maciço e imediato, enquanto nos alienamos com uma atrofia do processo de discernimento, de conexidade e de compreensão. À medida que aumenta nosso conhecimento sobre o mundo exterior e sabemos mais da matéria com a qual somos feitos, diminui e nos escapa o universo da interioridade e compreendemos menos quem somos.

Qual a representação disso no mundo exterior?

Os sintomas dessa contradição são muito visíveis nas tragédias e nos escândalos de uma tumultuada e confusa humanidade. Talvez esse desequilíbrio esteja no cerne da megacrise que testemunhamos, no seio de uma ecologia integral: individual, social e ambiental. Penso que o futuro da humanidade depende do que seremos capazes de investir no autoconhecimento, para que resgatemos um equilíbrio entre a evolução exterior e a interior, a partir de uma perspectiva dialógica entre a ciência e a consciência, que emana da visão holística da realidade.

o universo da interioridade nos escapa

o universo da interioridade nos escapa

O que é “consciência da inteireza”?

Trata-se de uma perspectiva integrada, que provém do termo grego “hólon”, que alia em si o “holos” da totalidade e o “on” das partes, o holismo com o atomismo. Bem conhecemos o axioma de sabedoria: “Pensar globalmente e agir localmente”, para não agir loucamente, gosto de acrescentar. O ser humano é um complexo corpo-psique-consciência, atravessado pelo mistério da essência. É também um microcosmo que recapitula e simboliza o macrocosmo. O universo confiou a cada um de nós uma parcela de si próprio, e nossa primeira responsabilidade é a de colocar um pouco de ordem, de paz e de harmonia no pedaço cósmico e de praça pública de nós mesmos. Nesse sentido, mudar o mundo é mudar o olhar, é ousar ser integralmente o que somos. Enfim, tudo o que é inteiro é belo, é pacífico, é justo, é saudável e é sagrado.

Não somos humanos, “nos tornamos humanos”. Pode falar um pouco mais sobre isso?

Confúcio já afirmava, há 2.500 anos, que o ser humano se caracteriza pelo inacabamento e que a tarefa de se educar é fundamental para a conquista da nobreza potencial de nossa espécie. Alguns milênios depois, o eminente educador brasileiro Paulo Freire insistiu no fato da incompletude humana, em sua proposta libertária de uma pedagogia do oprimido, centrada na autonomia. É o que traduzo afirmando que nós não nascemos humanos; nós nos fazemos humanos, por meio de um investimento disciplinado sobre a “terra prometida” que encarnamos. Tudo o que logramos em qualidade em nosso interior será transpirado naturalmente no contexto coletivo e planetário. Carl G. Jung, que considero o maior psiquiatra e terapeuta do século passado, teve o mérito de propor, além da tarefa higiênica do curar-se, o processo que denominava de “individuação”, uma jornada evolutiva por sendas interiores, que, da superfície da persona e do ego, nos conduza à centralidade do self, uma inteligência da inteireza psíquica. Os líderes do século XXI serão os que se atreverem a responder ao desafio da autotransformação, da atualização do imenso potencial do “homo sapiens sapiens”, que o filósofo Edgar Morin prefere renomear de “homo sapiens demens”.

A ciência e a tecnologia experimentam um avanço impressionante, mas o ser humano continua triste, doente, apático. Parece-me que não saímos da pré-história. O que falta?

A tecnociência é produto da mente analítica, que se caracteriza pela habilidade de decompor um todo em suas partes, por meio do que os gregos denominavam de “diabolôs”, o que divide. Seu oposto é “symbolos”, o que religa. Tudo o que é excessivo nos adoece. Não é difícil constatar que na Idade Média prevaleceu o fator “religare”, religioso, do symbolos. Seu excesso nos conduziu às fogueiras da “Santa” Inquisição. Foi natural a rebelião da inteligência ocorrida no século XVII, quando a bandeira do discernimento analítico foi levantada, num movimento dialético e compensatório da história da consciência. O que foi muito criativo e nos conduziu ao Iluminismo, ao império da razão. Entretanto, seu excesso, com a supressão do fator subjetivo e do sagrado, nos conduziu a duas guerras mundiais e aos campos de concentração nazistas. O que denominamos de 11 de Setembro pode ser compreendido como um sintoma nefasto de uma humanidade doente, em que o pior da Idade Média luta com o pior da Idade Moderna, o fundamentalismo religioso contra o fundamentalismo mercadológico, ambos utilizando a mesma lógica da violência e da exclusão. Ora, o que a Unipaz tem realizado há três décadas é precisamente a estratégia de

integrar o melhor da Idade Média com o melhor da Idade Moderna: a catedral e o oratório com a academia e o laboratório, symbolos com diabolôs, ciência com consciência. Penso que o futuro da humanidade dependerá dessa nova aliança, que implica o diálogo paradoxal e sinergético entre ciência, filosofia, arte e tradição sapiencial. Eis o cerne da abordagem transdisciplinar.

Conte um pouco de seu livro “O Poder do Encontro”.

Nele sustento a importância de uma quinta força em terapia, que integre a dimensão infra-humana e a transumana no coração aberto do ser humano. Seu início apresenta sete conceitos fundamentais que desenvolvemos ao longo dos últimos 30 anos: a visão holística, a paz, a transdisciplinaridade, a transcomunicação, a normose, a terapia da inteireza e, o que é o objeto fundamental da obra, a do cuidado transdisciplinar. Faço uma síntese das abordagens de alguns cientistas, filósofos, poetas e místicos do encontro que eu tive a oportunidade de travar contato, pessoalmente ou por meio de suas obras: Moreno, Buber, Carl Rogers, Eric Berne, Fritz Perls, Rolando Toro, Paulo Freire e, finalmente, Pierre Weil, mestre da abordagem transpessoal holística, pioneiro no Brasil. Dedico um capítulo à visão antropológica do humano, ao encontro biográfico ou à construção do eu no Ocidente, ao encontro de caminhos entre a estratégia ocidental e a oriental, ao cativar o encontro por meio da parábola de “O Pequeno Príncipe”, de Exupéry, ao encontro onírico e, finalmente, ao encontro imaginal. Enfim, como tenho sempre dito, ninguém transforma ninguém, ninguém se transforma sozinho; nós nos transformamos no encontro. Que não tardem as luzes imprescindíveis de uma civilização do encontro.