Celeste C. – Hoje em dia investiga-se muito sobre a questão da Consciência. No seu mais recente livro O Poder do Encontro – Origem do Cuidado, você aborda os diversos aspectos da Consciência. Como você define a Consciência?

Roberto C. – Nos nossos pressupostos antropológicos falamos de consciência no plural, já que consideramos o ser humano como um composto de três dimensões que passam, existenciais portanto, e uma dimensão  que permanece, o essencial.

A nossa dimensão mais densa, a qualidade de luz mais pesada em nós, é a do corpo físico. Existe uma consciência física/corporal, que ocorre através dos sentidos. É uma consciência focada na experiência com a matéria que nos constitui, no reino mineral, vegetal e animal.

O segundo composto, uma dimensão menos pesada de luz, já constituindo o invisível que estamos sendo, é a dimensão da psiquê. A psiquê se refere à nossa ancestralidade, a esse grande pacote de memórias encarnado em cada um de nós. Memórias biográficas, desde a concepção, passando pela existência fetal, pela primeira infância até o momento atual. Também memórias sistêmicas familiares, memórias do clã que nos habita, registros de uma dimensão mais sutil da psique que Jung explorou muito bem com a denominação de Inconsciente Coletivo ou filogenético: as pegadas da humanidade em nós, memórias da espécie humana. Este é o locus de uma consciência psíquica constituída de memórias e de representações que projetamos na realidade.

Acima deste plano informacional psíquico, da alma, há uma dimensão existencial mais sutil que se traduz por silêncio e por arquétipos ou imagens estruturantes, que estruturam a alma e o corpo: Nous, a consciência da consci-ência, vacuidade silenciosa de onde brotam o símbolo, o visível que aponta para o invisível. Trata-se da consciência noética, dotada de pausa e de quietude, a única que pode refletir a realidade de forma não projetiva, pois encontra-se além do jogo das memórias, do experienciado, do conhecido.

Então, se nós temos no primeiro estágio uma consciência física, pesada, dos nossos sentidos, num segundo estágio uma consciência psíquica, de representações, de memórias, de projeções, agora nós estamos no templo/espaço de silêncio onde há imagens e não memórias, imagens estruturantes, arquétipos de luz e também arquétipos de sombras, porque a luz e a sombra atravessam essas três dimensões existenciais. Essa é a consciência propriamente dita, metaconsciência, que pressupõe o dom do silêncio interior, da vacuidade fértil. Silenciar nossos pensamentos, advindos das memórias, significa conquistar uma consciência que não adultera a realidade, nela não projetando o passado e nem o futuro dele engendrado.

Esta consciência é metaforizada na tradição sapiencial como o espelho que, quando limpo, reflete fielmente a realidade. Uma outra metáfora é da superfície serena do lago que, por estar quieta e apaziguada, pode refletir de forma fidedigna a luz da lua e das estrelas, ou seja, a realidade.

De forma holística precisamos aprimorar a nossa consciência física, que é amplificada sofisticadamente pela tecnologia contemporânea, com o seu alcance e seus limites. Também aprimorar a consciência psíquica, através de uma educação que desenvolva a inteligência emocional, relacional e onírica – já que o corpo psíquico é um corpo onírico. O cultivo da alma implica no investimento no campo onírico e sua inteligência noturna, para que possamos aprender a conviver consigo mesmo, com o outro, com a comunidade e com a natureza. Agora, Nous é o território propriamente da Consciência não projetiva, a Consciência do sujeito, do latim subjectus, aquele que se sujeita… a quê? Nem às memórias físicas, nem às psíquicas; o que se sujeita ao Totalmente Outro, ao além da existência, àquilo que permanece, que

filosoficamente é denominado de essência ou de absoluto: Tao, Brahman, Infinito Eterno. Deus Absconditus, incognoscível, inefável, que infinitamente nos escapa, misterioso Sopro Vivente cujas energias podem ser captadas pela consciência noética, pelo seu dom de pausa, de abertura e de silêncio. Através de Nous as energias transcendentes podem tocar e transformar a psique e, através dela, o corpo físico, no fenômeno que denominamos de transfiguração.

A nobreza da consciência é a do sujeito, a Consciência da consciência, um dom iniciático do testemunho, da plena atenção, da vigília e da Presença, capaz de uma visão, de escuta, de faro, de degustação e de tato que se adentram além da superfície do literal e penetram no invisível, no templo simbólico do imaginal, que Henry Corbin denominou de mundus imaginalis, da imaginação criativa, o universo mitopoético que é a véspera do real que sempre nos escapa. Enfim, não há nada a negar ou idolatrar; há tudo a integrar e a transfigurar. Este é o espaço consciencial imperativo na nobre tarefa de educar para Ser.

Celeste C. – Fale-nos sobre a consciência na perspectiva integrativa de uma quinta força em terapia,“quando o corpo se submete à alma, quando a alma é orientada pela consciência e quando a consciência é habitada e conduzida pela Chama da Vida”, conforme você nos ensina em seu novo livro.

Roberto C. – Abraham Maslow falou de quatro revoluções ou forças que ocorreram na psicologia ocidental. A primeira e a segunda aconteceram quase que simultaneamente, por um lado inspirado nas experiências da reflexologia soviética de Pavlov, o movimento Comportamental ou Behaviorismo, susten- tado no determinismo reflexológico com seu dominante pré-pessoal, que desvelou uma certa engenharia comportamental que é muito útil, que pode ser utilizada na educação, no condicionamento terapêu- tico e, infelizmente, também em meca- nismos condicionantes aplicados na tortura e propagandas que visam objetivos meramente consumistas.

Por outro lado, a revolução realizada pela psicanálise de Freud, que desvelou o território do inconsciente, que representou uma pedra jogada na superfície serena do lago da psicologia dominantemente consciencial e centrada na vontade do século XIX. Freud demonstrou que a alma é maior do que a consciência, e que não reinamos na nossa própria casa interior, em função de uma força compulsiva do passado que pode tornar a pessoa um joguete ou fantoche do que desconhece em si mesma: o inconsciente. Propondo um determinismo psíquico das potências psíquicas, Freud propôs uma psicologia de controle que transforme id em ego, inconsciente em consciente. E ele próprio sabia que isso era impossível de se fazer plenamente. Em um momento de quase humildade ele afirmou que há três coisas impossíveis: governar, educar e psicana- lisar. Eu digo quase humilde, pois ele não foi capaz de precisar: – Impossível com os meus instrumentos analíticos. Assim, de forma um tanto pessimista, o projeto freudiano visava o alvo de uma “infelicidade suportável‟. Essa força que se centrou mais e se aprofundou no ser humano através da histeria, da neurose, teve uma importância redefinidora no Ocidente. Essas duas primeiras revoluções são contemporâneas, através de seus múltiplos e criativos enfoques que seguem se desenvolvendo, com o seus alcances e naturais limites.

A Terceira Força é a do Movimento Humanístico, com a contribuição inestimável de Carl Rogers, de Rolo May, Eric Berne, Perls, Krippner e outros pesquisadores, que chamaram atenção para algo que está além da histeria e além do universo reflexológico: a saúde humana. Rogers afirmava a existência de uma tendência realizadora: assim como uma planta tem o tropismo para florescer, o ser humano tem uma tendência para se realizar, para se autorregular, para desenvolver-se rumo à atualização do seu potencial. O estrangulamento deste processo, por determinantes e interdições socioambientais, ocasionam um tipo de sofrimento fetal, de um ser impedido na sua tendência inerente de realizar-se. O movimento humanístico inovou e ampliou de maneira extraordinária os cenários da psicologia e da educação, destacando os aspectos preventivos e evolutivos, com sua ênfase na saúde, sem negar a existência da patologia que precisa ser reconhecida e transcendida através de uma escuta sensível e de um cuidado facilitador e reparador. Eu tive o grato privilégio de conhecer Carl Rogers quando ele esteve em 1977, com seu staff, pela primeira vez na América do Sul, no célebre encontro na Fazenda de Arcozelo, RJ. Muitos anos depois tornamos a nos reencontrar em Brasília, quando ele já tinha logrado uma lúcida visão holística, através do seu encontro com a obra de Smuts, com o Capra, o Prigogine, o Gyorgyi e outros, postulando uma tendência formativa: não apenas o indivíduo, mas o próprio universo, pela força da sintropia, tende a desenvolver-se em complexidade e ordem evolutiva.

Maslow afirmava que a Terceira Força era de transição para uma Quarta Força transumana, centrada no cosmo. Surge então o movimento transpessoal, centrado nos estados ampliados da consciência, através de grandes investigadores como Viktor Frankl, Stanislav Grof, Anthony Sutich, Michael Murphy, Fadiman, Weil, entre outros. Enfim, o ser humano tende além da saúde para uma plenitude possível.Meu livro,Saúde e Plenitude, foca esta vasta questão. É preciso reconhecer e destacar que Carl Gustav Jung teve  uma presença marcante em praticamente todas esta Forças, tendo sido um notável precursor da Terceira e também da  Quarta Força, introduzindo a questão evolutiva e iniciática na psicoterapia através da sua proposta original do processo de individuação, um caminho além da cura, de autorrealização que, da superfície do ego, sempre por trilhas interiores e labirínticas, nos possa conduzir à centralidade do Self.

Bem, agora chegamos à sua questão. Quando realizamos com Pierre Weil, que foi um pioneiro da transpessoal e da holística no Brasil e na Europa, juntamente com o Jean-Yves Leloup e a Monique-Thoenig, o I Congresso Holístico Internacional – I CHI, em março de 1987, na capital do Brasil, centrado na visão holística e na abordagem transdisciplinar da realidade, com o tema central Pontes sobre todas as fronteiras, pareceu-me evidente que estávamos transcendendo a Quarta Força, na direção de uma perspectiva integrativa dos aspectos pré- pessoais, dos pessoais e dos transpessoais: uma terapia e pedagogia centradas na inteireza humana. Após muitas reflexões, Pierre e eu concordamos que estávamos lançando os fundamentos de uma Quinta Força em terapia, visando contribuir com o movimento transdisciplinar holístico desenvolvido na Europa, sobretudo por Basarab Nicolescu e Edgar Morin. Foi o que afirmei em uma conferência internacional na Universidade de Lisboa, em 1998, na presença de Grof, Sheldrake, Goswami e Pribran, numa palestra denominada de Saúde Integral: o resgate da consciência da inteireza: após um século de uma psicologia, psiquiatria e pedagogia centradas no fator exclusi- vamente pessoal, num movimento dialético compensatório de resgate das asas, surge o movimento Transpessoal, que também foi de transição para o que nós consideramos uma Quinta Força, que não coloca ênfase nem no infra pessoal, na questão meramente reflexológica, nem no pessoal e nem no transpessoal, porém na integração das raízes com as asas através do tronco dessa Escada de Jacó, que conecta os abismos da natureza aos cumes elevados do transpessoal.

Então, há 30 anos nós estamos desenvolvendo o que denominamos de uma terapia da inteireza, considerando que o alvo é lograr essa integração na complexidade do composto humano, tecida do que as tradições xamanísticas postulam como os três mundos: o de baixo, o do meio e o do alto. O de baixo é o mundo da Natureza em nós – o mineral, vegetal, animal: o infra-humano; o mundo do alto, transumano, refere-se ao universo transcendente de silêncio e de arquétipos, altaneiras imagens estruturantes. O mundo de baixo e o do alto se encontram no mundo do meio, o coração humano, nossa dimensão propriamente humana, o templo-espaço de Aliança entre as raízes e as asas.

Podemos indicar, com a tradição hindu, que os três primeiros chakras de base correspondem ao mundo mineral, vegetal, animal, correspondem à natureza em nós. Os três chakras transcendentes, o angelical, o arquiangelical e o lótus das  mil pétalas, correspondem ao mundo do alto, e o quarto chakra, do coração, é a câmara nupcial, um espaço de bodas entre a terra e o céu.

A UNIPAZ do Rio de Janeiro já realizou diversas versões da formação na Quinta Força em terapia. Na UNIPAZ de Brasília, Lydia Rebouças e eu desenvolvemos um grupo piloto da formação na Terapia da Inteireza, centrada na perspectiva da Quinta Força.

É importante considerar que, com humildade e ousadia, estamos desenvolvendo uma proto-abordagem, estabelecendo alguns fundamentos básicos nesta perspectiva que  abraça uma antropologia, uma metodologia  e uma cartografia abertas à vastidão do fenômeno humano. Encontramo-nos ainda nos primórdios; será talvez a tarefa mais importante dos próximos séculos a investigação, o investimento e a construção na interioridade do cosmo humano. Penso ser imenso o alcance dessa visão de terapia centrada na inteireza, juntamente com a perspectiva iniciática de uma educação integral, que talvez represente o descortinar de um horizonte renovado e ampliado, para o resgate e a reconstrução evolutiva do esquecido projeto da totalidade humana.

Não é difícil constatar que há um sistema insustentável que está desabando pela força da desumanidade e de contradições crônicas, pela inércia da normose, o que produz muito barulho. Entretanto, há um outro sistema surgindo do que desaba, uma borboleta despontando de uma crise da crisálida e que, como tudo o que nasce, não faz ruído; desabrocha suave e silenciosamente.

Mais do que nunca necessitamos de bons jardineiros e de facilitadores de um cuidado integral para conspirarmos pela utopia realizável da inteireza humana, de onde brota a paz em um mundo mais habitável, mais amoroso, mais responsável, mais ético e plenamente humano.

Celeste C. – E tem alguma coisa a ver com  a Psicologia Integrativa, que andam trabalhando em diversos lugares?

Roberto C. – A palavra integração talvez seja a mais imprescindível, e mesmo sagrada, que aponta para o cerne da visão holística e da abordagem transdisciplinar da realidade. Ken Wilber nomeia a sua abordagem de integrativa, o que caracteriza a ação de quem exercita, na maturidade, o processo terapêutico, educativo e o empreendedorismo com virtude de sustentabilidade e de respeito à vida. Integrar texto ao contexto, razão ao coração, sensação à intuição, efetividade à afetividade, masculino ao feminino, profano ao sagrado, eis um desafio incontornável que sintetiza a proposta renovadora da própria UNIPAZ e também do Colégio Internacional dos Terapeutas.

Uma Psicologia realmente integrativa precisa fundamentar-se numa visão antropológica aberta para o psicos- somático, o social, o ambiental e o espiritual, uma visão assumida pela própria Organização Mundial de Saúde.

Celeste C. – Nós escrevemos um artigo falando sobre o séc. XX como sendo o Século da Inteligência, que se iniciou em 1900 com o QI (Quociente de Inteligência) e chegou ao ano 2000 com o QS (Quociente Espiritual). Fale-nos algo sobre isso.

Roberto C. – De fato, necessitamos desvelar o que tenho denominado de inteligência integral, pois nenhuma inteligência meramente especializada pode responder, com competência, aos imensos desafios de uma crise que é global. A normose da superespecialização nos sequestra a visão global, sem a qual a nossa ação local é destituída de compreensão e de sentido. Ver globalmente para agir de forma consciente e responsável localmente, e não loucamente, o que caracteriza uma certa decadência que testemunhamos com tristeza, provocada sobretudo pelo naufrágio dos valores perenes de uma ética do coração.

Além da inteligência cerebral, necessitamos da inteligência psíquica, nas suas diversas esferas, sobretudo a emocional, a relacional e a onírica. A inteligência noética e simbólica nos abre para a escuta do silêncio e do mundus imaginalis, o universo arquetípico da consciência altaneira, aberta ao mistério do Ser, ou seja, da inteligência essencial. Enfim, a inteligência essencial precisa orientar a inteligência consciencial, que necessita nortear a inteligência psíquica, como a mestra da inteligência  cerebral: eis uma holoarquia da inteligência a ser conquistada inicialmente no interior de nós mesmos para, de forma consistente e autêntica, ser expandida para o contexto social e civilizacional.

Celeste C. – Em todos os que trazem uma tarefa importante para desempenhar na Terra, costuma ocorrer a fase da tentação antes que haja a projeção e a fama. Fale-nos sobre a consciência da sombra transpessoal e como transformá-la em luz.

Roberto C. – Se compreendo bem a sua questão, não podemos chegar no reino da luz fazendo economia da travessia pelo mundo da sombra. O ser humano habita no seio das polaridades: o dia e a noite, o masculino e o feminino, a lágrima e o riso, o bem e o mal, um horizonte para o qual aponta todas as grandes tradições sapienciais, como a do taoísmo. A trilha da individuação, portanto, transcorre neste embate natural no coração das três dimensões existenciais – da natureza, da alma e da consciência –, que nos conduz a um despertar gradual através do passo nosso de cada dia.

A sombra transpessoal refere-se ao universo noético, ao embate numinoso entre arquétipos luminosos e sombrios. Como afirmava o criador da terapia iniciática, Graf-Dürckheim, uma das características do verdadeiro processo evolutivo é a interferência do adversário, a sombra do transpessoal. Trata-se de um confronto natural, através do qual, no bom e necessário exercício da resiliência, nossas raízes se fortalecem e o aço do Ser é temperado.

Novamente, nesta arena nos deparamos com a questão integrativa, para evoluirmos além das  tentativas superficiais e egoicas de negação ou de exclusão do que consideramos indesejável em nós e no mundo. A sombra necessita ser reconhecida e aceita, pelo seu direito natural de existir, antes de ser integrada e, assim, transcendida. Como bem indica Jung, eis o alvo supremo de todo processo de individuação: a coincidentia oppositorum, a coincidência e transcendência dos opostos, que implica ir além do bem e do mal, o Tao do Ser.

Celeste C. – Em tempos de rumores de guerra e no convívio diário com a violência urbana, como manter a consciência pacífica e tranquilizar os que se encontram próximos, seguindo as lições da Arte da Guerra e da Arte da Paz?

Roberto C. – Há três tipos de pessoas que querem mudar o mundo: o rebelde, o revolucionário e o conspirador. O rebelde é uma pessoa imatura, que não resolveu seus conflitos interiores com suas autoridades introjetadas, projetando-as no mundo externo, e que necessita, basicamente, de psicoterapia. O revolucionário já é alguém que atingiu a maturidade e que chegou no que Kant denominava de catedral da razão, dotado da capacidade de criticar as contradições da ideologia vigente, com a proposta de outra mais lúcida e justa. Entretanto, a atitude revolucionária é sempre um pouco arrogante, já que implica na pretensão de mudar os outros, a sociedade e o mundo, sem antes ter conquistado a autotrans- formação. Como dizem os mestres de todos os tempos: conheça-te a ti mesmo e conhecerás o teu senhor, a tua senhora! Talvez este desequilíbrio possa explicar o fracasso das revoluções, sobretudo quando elas logram o poder…

Resta-nos a opção sábia do conspirador, no sentido em que a Marilyn Ferguson emprega este conceito no seu livro clássico, A Conspiração Aquariana. Trata- se de alguém que despertou para fazer frente à primeira tarefa: a de transformar este pedacinho de praça pública encarnado em cada um de nós, ou seja, este corpo, esta alma, esta consciência. E quando logramos minimamente esta transformação no espaço da ecologia individual, já que não estamos separados do universo, esta conquista é naturalmente transpirada para o mundo externo, a sociedade e a natureza.

É preciso ousar o bom combate pela paz, com as armas da consciência, da gentileza, da compreensão, da sabedoria fraterna, da coragem de florescer. A grande batalha, entretanto, é a que travamos no interior de nós mesmos, que visa submeter o ego às forças amorosas, responsáveis e compassivas do Ser.

Celeste C. – Você cita uma bonita frase da tradição budista onde o Cosmos é descrito como uma teia de fios dourados que une miríades de joias multifacetadas, cada uma refletindo a luz de todas as outras. Conte-nos um pouco sobre sua experiência englobando a consciência e a transcomunicação.

Roberto C. – Trata-se da simbólica do colar de Indra, da tradição hindu, onde cada ser humano é uma pedra preciosa que reflete em si todas as demais, vinculado a um círculo onde com a mão esquerda recebemos e com a mão direita ofertamos, uma sinergia de dons. É uma bela imagem da ecologia do Encontro onde, ao mesmo tempo, todos somos discípulos e mestres, já que  sempre temos algo a doar e algo a receber, uma lei essencial da ordem sistêmica. Evoca também a metáfora do holograma, que demonstra que a parte está no todo e a totalidade encontra-se em cada parte. Neste sentido, quando um ser humano se transforma, em alguma medida há uma transformação na própria humanidade. O que aponta para a nossa responsabilidade individual, pois transformar o mundo é abrir o olhar, é mudar o pensar, é habitar  o instante, é ser capaz de amar.

A questão da transcomunicação é natural na abordagem transdisciplinar, cujo primeiro axioma postula a existência de múltiplos níveis de realidade. Na física quântica Nicolescu fala da macrofísica, da microfísica, da teoria das cordas e do ciberespaço. Do ponto de vista antropológico, conforme já refletimos, há o campo físico, o psíquico e o noético. A comunicação é horizontal e ocorre num único e mesmo plano. A transcomu- nicação é vertical, e implica no trânsito consciente pela diversidade dos mundos encarnados em nós, e que também se encontram fora de nós, cada qual com sua lógica própria, sua dinâmica particular, seus habitantes singulares. Ser capaz de entrar em contato com o reino da natureza e seus elementais, com a dimensão humana da alma, encarnada ou não, e também com o plano transpessoal, transumano, com seus arquétipos transcendentes, isto é o que compreendo por transcomunicação. O Encontro trans- disciplinar transcorre na convergência entre a comunicação e a transcomuni- cação, sem fusão, sem exclusão, sem separação.

Celeste C. – Fale-nos um pouco sobre sua experiência de 30 anos junto à UNIPAZ – Universidade Internacional da Paz, os 25 anos do CIT – Colégio Internacional dos Terapeutas, e o que sonha para os próximos anos nas vivências do Cuidado?

Roberto C. – Como afirmo na introdução do meu livro, O Poder do Encontro, durante três décadas a UNIPAZ desenvolveu e amplificou sete conceitos fundamentais, sendo que três foram concebidos em nosso canteiro de obras, a metáfora que sempre utilizo para referir-me à nossa tarefa de edificar um novo edifício do aprender a aprender, os fundamentos básicos da nossa utopia realizável de uma cultura de paz, irradiando-a para o Brasil e o exterior. Os conceitos são o da visão holística, o da paz, o da transdisciplinaridade, e o da transcomunicação. Para compreendê-los, concebemos e desenvolvemos o conceito da normose, a patologia da normalidade, que por um lado consiste na adaptação a um sistema dominantemente desequili- brado, corrompido e doente e, por outro, na estagnação evolutiva, já que não nascemos humanos, nós nos fazemos humanos através de investimentos sistemáticos não apenas no terreno da matéria; também no da alma e no da consciência, como já enfatizamos. O outro conceito que concebemos também já abordamos: a terapia da inteireza. Finalmente, o que é objeto do livro em questão, o Encontro transdisciplinar, construído no entrelaçamento de todos os demais conceitos, que nos abre uma nova perspectiva relacional e mutacional, e que se encontra na origem do cuidado, como sua matriz fundante. É o que traduzo afirmando que ninguém transforma ninguém e ninguém se transforma sozinho; nós nos transformamos no Encontro.

Quanto ao CIT, que ressignificou o conceito de terapeuta e da atitude terapêutica, ele tem se irradiado no Brasil congregando facilitadores na arte de um cuidado integral aplicado à clínica, à sociedade e à natureza. Diante das décadas tremendas que se apresentam à nossa frente, nestes tempos desafiadores de transição em escala planetária, necessitamos de uma pedagogia iniciática, que nos inicie no processo do desenvolvimento e florescimento do potencial humano, e de uma terapia com natureza também iniciática, que cuide da nossa inteireza dissipada e ferida. Gosto de confiar que a maior descoberta do século XXI será a inteireza do ser humano, um projeto infelizmente até  agora esquecido, apequenado e negligenciado. Temos contas a prestar às gerações ancestrais e às gerações do porvir! Se o ser humano tem sido o problema, poderá ser também a solução.

Enfim, nosso sonho é o da conspiração, contida no mito que contamos há trinta anos: o de um beija-flor que teima em levar gotinhas d‟água para aplacar a fogueira da desumanidade que nos envolve, e pela qual somos responsáveis, e que acende uma vela ao invés de apenas reclamar da escuridão. Que faz a sua parte e, por isso, repousa em paz, entre um voo e outro, entre uma gota e outra, entre uma inspiração e uma expiração, entre o labor e o louvor. Eis o desafio transformador do testemunho!

Gosto muito de um poema da tradição mística basca:

Procure ficar de pé.

Mas se você cair, procure não ficar no chão. E sem nem isto você conseguir, então eleve o seu coração aos céus, como um mendigo faminto, e peça que ele seja preenchido de

amor.

E ele será.

Muitas coisas podemos aprender no sofrimento.

Você pode ser derrubado. Você pode ser mantido no chão. Mas ninguém, ninguém pode

impedi-lo de elevar o seu coração aos céus, exceto você.