O que é ser humano? Onde aprendemos a ser humanos?

Talvez a maior tragédia da ultrapassada modernidade aponta para a questão educacional e assim pode ser resumida: logramos o desenvolvimento sofisticado da ciência e tecnologia sem uma correspondente evolução psíquica, ética, noética e espiritual. A aculturação e educação clássica têm se resumido a um processo de adestramento racional e aquisição de um repertório comportamental adaptativo a um contexto mórbido em grande escala. Nas escolas, o aluno é obrigado a “engolir” informações que se tornam obsoletas em quatro anos e a “vomitá-las” nos exames. Aplica-se o perverso método da comparação, em que uma performance padrão é exigida, com a repressão sistemática da diversidade e originalidade. O tratamento é maciço e a transmissão autocrática, num clima tristemente paranoico, em que um suposto- saber julga um suspeito-saber. Neste alienante sistema, é solenemente desprezado o mais propriamente humano: o plano do coração, das emoções e sentimentos, da intuição, valores e a dimensão noética e transpessoal.

Assim é que o ocidental típico tornou-se perito na exploração do espaço exterior, vasculhando os confins do sistema solar, enquanto permanece virgem e inexplorada a dimensão do espaço interior, a sua própria alma. Eis o absurdo óbvio: depois de décadas de bancos escolares e universitários, o erudito doutor segue sendo um analfabeto emocional, um bárbaro da vida anímica, desconhecedor de si, enfim, um ignorante existencial.

             Há uma estória sufi que ilustra bem essa contradição fatídica, que ameaça o futuro das novas gerações. Mulla Nasrudin, um mestre que notabilizou-se por utilizar o humor como instrumento pedagógico, era um barqueiro que levava as pessoas de uma margem do rio para a outra. Esta pode ser considerada a tarefa básica de toda maestria autêntica: facilitar que a pessoa faça a travessia da margem da ignorância para a do esclarecimento e autoconhecimento. Certa ocasião, um erudito professor recorreu aos préstimos de Nasrudin. Quando iniciaram o percurso o importante professor indagou ao humilde barqueiro: “Você estudou física e matemática?” “Não”, respondeu Nasrudin. “Sinto muito”, concluiu enfático o professor – “você perdeu a metade da sua existência!”  Um pouco depois, o barco colidiu com uma rocha e começou a naufragar. Então o barqueiro perguntou ao assustado professor: “Você aprendeu a nadar?”  “Não”, respondeu o professor, alarmado. “Sinto muito, você perdeu toda a sua existência!”, sentenciou o mestre.

Partindo da constatação de que a educação reducionista-tecnicista tradicional não tomou para si a nobre função de facilitar que o aprendiz aprenda a nadar nos rios da existência, não é para se estranhar o flagelo crítico contemporâneo: a inversão valorativa e falência da ética, o “mar de lama”da corrupção, cinismo e omissão, a onda crescente de violência e injustiça social, o aumento dramático do índice de suicídio infanto-juvenil, a depredação ambiental e o quase fenecimento da cultura ocidental.

É preciso ousar desenvolver, com urgência, uma ecologia do Ser, em que o humano possa ser desvelado e cultivado em toda a sua extensão, altitude e profundidade. Para tal, torna-se imprescindível que esclareçamos os nossos pressupostos antropológicos. É a partir da imagem do ser humano que adotamos, consciente ou inconscientemente, que será modelada a nossa atitude frente ao mesmo, no contexto da família, da escola e da sociedade. Segundo Jean-Yves Leloup, mentor do Colégio Internacional dos Terapeutas, há quatro pressupostos antropológicos que já eram postulados há mais de dois milênios e continuam sendo sustentados, na contemporaneidade:

  1. O pressuposto somático (materialista)

Nesta visão, o ser humano é matéria, pó que retornará ao pó, um organismo composto que será, um dia, decomposto.  O que chamamos mente e consciência são epifenômenos, nada além da dinâmica das sinapses em nossos hemisférios corticais. A matéria é o fator primordial; o psíquico é apenas um derivado, um reflexo da realidade objetiva no cérebro, dirão os reflexologistas.

Neste caso, educar é manter e aprimorar as funções corporais, introduzindo qualidade e um estado de excelência em nossos reflexos condicionados de forma a possibilitar sucesso e êxito material na existência. Subjacente a este postulado, encontra-se uma mensagem, menos ou mais explícita: “Aproveite o máximo que puder pois a existência é um breve sopro; mais alguns anos e você será um risco no espaço!…”

Trata-se apenas de desenvolver nossa inteligência somática para que seja possível o pleno sucesso material na existência.

  1. O pressuposto psicossomático

Aqui, alarga-se o horizonte com a inclusão da dimensão psíquica: nosso corpo é animado; há informação em nossa matéria. A psique representa o mental e o emocional, nossos pensamentos e emoções.

A educação psíquica é um grande imperativo de nosso momento histórico. Precisamos incluir, em nossos currículos escolares e universitários, o esclarecimento e aperfeiçoamento da dinâmica mental e a exploração e aprimoramento do nosso universo emocional e sentimental, bem como o valorativo. Mais do que nunca, carecemos de inteligência psíquica, mental, emocional e ética. Educar necessita ser mergulho e conquista da alma. Um excepcional Educador já afirmava, há dois mil anos: “O que vale ganhar o mundo inteiro se você perdeu a sua alma?”

Corpo e psique conformam uma unidade, porém não uma identidade. Este é um tema fundamental: a possibilidade da continuidade da existência psíquica após a morte corporal. Pesquisas abundantes em ciências psíquicas de ponta, como a parapsicologia, psicologia transpessoal e tanatologia evidenciam significativamente nesta direção: a psique é transcerebral. Neste caso, é bastante ampliada a nossa responsabilidade individual: temos contas a prestar pela qualidade de nossos desejos, pensamentos, palavras e ações!

  1. O pressuposto psicossomático-noético

Acrescenta-se, agora, uma outra palavra grega: nous. Alguns a traduzem por  intelecto ou espírito. O sentido em que a estou empregando é de uma inteligência silenciosa e contemplativa. A dimensão noética é a de uma psique apaziguada e serena; uma consciência sem objeto; uma capacidade de refletir a realidade sem projeção da memória, pensamentos e sentimentos. A inteligência noética é a de um espelho limpo, sem nenhum registro, onde tudo pode ser refletido com clareza. É como a superfície tranqüila de um lago que pode refletir a lua e as estrelas.

Conquistar qualidade noética significa aquietar a agitação mental. Em todas as grandes tradições sapienciais há caminhos milenares para esta conquista: a contemplação cristã, a meditação budista, as diversas yogas do hinduísmo, o zazen e o koan do zen, o tai-chi-chuan do taoismo, os diversos caminhos meditativos que podemos encontrar nos caminhos de libertação orientais e ocidentais. Na Universidade Holística, esta prática essencial de cultivo do Ser é denominada de holopráxis.

 Uma educação para a inteireza não é possível sem a consideração da qualidade noética, de onde emanam a lucidez dos sábios e a criatividade autêntica e profunda.

  1. O pressuposto psicossomático-noético-Espiritual

Eis o quaterno antropológico, concluído com a verticalidade da categoria essencial. Pneuma é a tradução grega do hebraico Ruah, termo feminino que significa Sopro. Em latim é traduzido por Espírito. Enquanto o soma, a psique e nous referem-se à nossa condição relativa existencial, Pneuma representa a essência, o Absoluto. E como diz o bom filósofo, a grande arte é não relativizar o Absoluto e nem absolutizar o relativo. O mais próximo desta realidade vital é a dimensão noética, que pode refleti-la, como o espelho pode refletir a luz do sol.

Não é possível qualidade total sem a consideração da espiritualidade: uma consciência de participação não dual que se traduz por amor e solidariedade. Também fonte transbordante dos valores fundamentais da espécie que constituem o coração de uma ética essencial, desgraçadamente perdida nos momentos sombrios e desviados da modernidade.

A repressão sistemática do Espírito, pelo cânone dogmático de certo racionalismo fanático positivista, a partir do decantado Iluminismo, tem sido causa de grandes tragédias. A sede de infinito, não sendo aplacada pelos autênticos caminhos da Tradição sapiencial, encontra-se na fonte de toda sorte de compulsividade, do consumismo à drogadição, gerando um terreno propício aos oportunistas, uma “máfia do espírito” que fazem desta triste miséria um rendoso e pervertido negócio.

A inteligência espiritual é o instrumento básico da grande Conspiração dos Despertos pela perpetuação da espécie humana, com qualidade, dignidade e a reconexão do conhecimento com a dimensão do amor e compaixão.

A Questão Metodológica: Análise e Síntese

 Após a clarificação da imagem do homem, torna-se necessário a reflexão metodológica: como abrir caminhos para o resgate da inteireza humana?

A disciplina foi uma das grandes inovações do racionalismo científico. O enfoque disciplinar, essencialmente analítico por dividir o todo em suas parcelas, gerou a especialização. O sistema educacional tradicional tem sido um modelador básico de especialistas. Vale indagar: o que é um especialista?

Eis a definição mais completa que pude lapidar acerca desta questão: o especialista é uma pessoa exótica, que sabe quase tudo de quase nada, dotado de uma certa imbecilidade funcional, que aprendeu a fazer um determinando “cacoete”, que se orgulha de sua unilateralidade de visão e de ação e que perdeu, desgraçadamente, a visão de totalidade. A especialização, neste sentido, é uma elegante viseira que impede a pessoa da visão de totalidade, imprescindível no fornecer orientação e sentido à nossa caminhada.

Fazer lúcida crítica ao modelo disciplinar da especialização não significa negar a sua função e importância.  A revolução científica e industrial descartou, definitivamente, o ideal do gênio enciclopédico e do “generalista”. Por outro lado, o especialista alienado constitui uma  doença coletiva que pode ser fatal. É perigoso apertar parafusos sem saber por que, para que, para quem. Quando a bomba atômica explodiu em Hiroxima e Nagasaki,  um dos seus idealizadores, Oppenheimer,  depois de atravessar uma profunda crise de consciência, sentenciou:  “O maior perigo da humanidade é o cientista alienado!”  Para transcender este insuficiente modelo, há uma palavra chave: transdisciplinaridade.

Desde 1986, através da Declaração de Veneza, seguida pela Declaração de Vancouver (1989), a Carta de Paris (1991) e a Declaração de Belém (1992), todas sob a égide da UNESCO foi lançado o maior desafio, sobretudo para o campo da educação: a premente necessidade de desenvolvermos a abordagem transdiciplinar. Destaco, a seguir, algumas contundentes afirmações da Carta de Paris, comunicado final do Congresso Ciência e Tradição – Perspectivas Transdisciplinares, Aberturas para o Século XXI:

  1. Assistimos atualmente a um perecimento da cultura. De maneiras diferentes este fato afeta tanto os países ricos quanto os pobres.
  2. Um destes fatores se encontra na crença da existência de uma via única de acesso à Verdade e à Realidade. No nosso século, esta crença engendrou a potência maciça da tecnociência: Tudo que poderá ser feito será feito! Assim, está presente o germe de um totalitarismo planetário.
  3. Uma das revoluções conceituais deste século, paradoxalmente, veio da ciência. Em particular, a física quântica fez explodir a antiga visão da Realidade, com os seus conceitos clássicos de continuidade, de localidade e de determinismo que, no entanto, predominam ainda de modo bastante difundido no pensamento político e econômico. Ele fez nascer uma nova lógica, isomorfa em muitos aspectos, antigas lógicas esquecidas. Um diálogo capital entre ciência e Tradição (espiritual) pode, a partir de então, se estabelecer de modo cada vez mais rigoroso e aprofundado para construir uma nova abordagem científica e cultural – a transdisciplinaridade.
  4. A transdisciplinaridade não procura construir um sincretismo qualquer entre ciência e Tradição: a metodologia da ciência moderna é radicalmente diferente das práticas das Tradições. A transdisciplinaridade procura pontos de vista de onde possa torná-las interativas, assim como espaços de pensamento que façam ressaltar a sua unidade, ao mesmo tempo em que respeitam as suas diferenças, mais particularmente graças a uma concepção renovada da natureza.
  5. Uma especialização cada vez mais aprofundada tendeu a separar a ciência da cultura, separação esta que constitui a marca própria do que se chamou “modernidade”e que foi apenas uma concretização da clivagem sujeito-objeto que se encontra na origem da ciência moderna. Ao mesmo tempo em que reconhece o valor da especialização, a transdisciplinaridade procura ultrapassá-la, recompondo a unidade da cultura e redescobrindo-lhe o sentido inerente à
  6. vida. (…)”

Para viabilizar, na prática, a abordagem transdiciplinar, nas últimas décadas eu tenho desenvolvido um método sintético, como uma via qualitativa que precisa ser exercitado com a maior urgência, e que complementa o método analítico clássico. A seguida, traço um pequeno resumo destas duas vias de acesso à Realidade viva:

O método analítico moderno é um importante fruto do racionalismo científico que se ergueu como saudável e necessária reação ao indiferenciado obscurantismo medieval que simbiotizava religião e ciência sob a tirania da “Diabólica” Inquisição. Focaliza a parte, buscando as unidades constitutivas e atuando como eficiente bisturi retalhador de totalidades. Gerou o enfoque disciplinar, caracterizado pela tendência reducionista e unilateralidade de visão. Sustentado no paradigma mecânico clássico, inclinou-se para um enfoque mecanicista. Caracteriza-se pelo aspecto quantitativo, perseguindo o ideal da codificação matemática. Fundamenta-se, sobretudo, na razão e sensação, dirigindo-se pelos cinco sentidos humanos. Parte do princípio da forçosidade, ou seja, prescreve  a existência de leis necessárias e gerais que engendram o determinismo, visando o controle e a previsibilidade. Veste o aparamento sofisticado da exatidão. Implica a abordagem linear da causalidade: todo fenômeno é efeito de uma causa. É progressivo e acumulativo. Parte de uma atitude básica extrovertida, afirmando-se como excelente instrumento de estudo e exploração do espaço exterior. Tem como meta ideal a objetividade e isenção valorativa, excluindo a subjetividade do seu manipulador. É experimental: o seu produto típico é gerado em laboratórios sofisticados, com manipulação impecável das variáveis. Seu substrato neurofisiológico – levando em conta a interconexão cerebral – é o hemisfério esquerdo, da racionalidade, predição e angústia humana. Caracteriza a mentalidade típica do ocidental. Postula uma função explicativa: objetiva explicar ativamente o universo.

O método sintético delineou-se no final do século XIX e início deste, como uma reação à fragmentação e dissociação geradas pelo síndrome do analisicismo. Focaliza a totalidade, a interconexão, a forma, a gestalt, visando o processo de vinculação e unificação. Sua tendência é ampliadora e de integração. É uma via qualitativa que se indica mais por linguagem poética e metafórica, por seu caráter inefável. É orgânico, retomando os ritmos vitais. Fundamentado principalmente nas funções psíquicas do sentimento e da intuição. Parte de um espaço de indeterminismo, de intrínseca liberdade e responsabilidade. Enfatiza a participação e a singularidade de cada encontro. Ocorre na instantaneidade, no salto abrupto, no insight: é não cumulativo. É sincronístico, reconhecendo as coincidências significativas ou o princípio das conexões acausais ou transcausalidade. Reveste-se de tecido vivo, flexível e impreciso, desapegado da exatidão. Amplia-se no aspecto descritivo e biográfico. Guia-se por uma visão introspectiva que descortina e investiga o espaço interior. Assume um caráter consciencial subjetivo, a intersubjetividade e os valores. Focaliza a finalidade, o significado ou sentido. É experiencial: seu produto típico é fruto do laboratório vibrante da vivência humana. Seu substrato neurofisiológico é o hemisfério cerebral direito. Exerce uma função compreensiva: é um caminho para se compreender contemplativa e participativamente o universo.

Ao lado do analista, portanto, necessitamos desenvolver o sintetista, uma inteligência da globalidade que atua como agente de reparação da inteireza. Complementando as definições acima, a seguir pontuo algumas características principais destas duas funções:

[table id=3 /]

Estas duas escutas e competências não se antagonizam, como fomos condicionados a crer nestes últimos séculos. Pelo contrário, elas se complementam e harmonizam, em sinergia, habilitando-nos a uma visão e atuação de integralidade, transdisciplinar. O substrato simbólico neurofisiológico desta abordagem, portanto, não é nem o hemisfério esquerdo e nem o direito; é o corpo caloso, que os interligam. Em algumas escolas de sabedoria, o corpo caloso é referido como a terceira visão ou chifre do unicórnio.

 A importância deste esquema é apontar a contradição básica de nosso sistema educacional: nela, a função do sintetista é desprezada ou, pior ainda, reprimida sistematicamente, o que tem causado a sua atrofia. Uma educação renovada, que queira fazer justiça à inteireza do ser humano, precisa incluir, em seus programas, o desenvolvimento de todas as características da virtude sintética. Resgatar a  dimensão simbólica, intuitiva, onírica e essencial de uma pedagogia centrada na inteireza é o maior desafio que aguarda os novos educadores do próximo milênio. O futuro da educação depende do Chifre do Unicórnio, uma metáfora que indica o resgate da consciência da inteireza!

Rumo à Vocação

 Somos todos filhos e filhas de uma Promessa que fizemos a nós mesmos. Há uma semente inerente ao nosso Ser; recebemos talentos na medida de nossas possibilidades e, fazer com que rendam em abundância é a tarefa básica da existência. A vocação é a voz de nosso mais íntimo desejo, a nos convocar para uma tarefa pessoal intransferível que representa a  nossa contribuição singular ao universo.

Não foi especulando e lendo livros de filosofia que desvelei este tema tão essencial para cada ser humano. Foi no meu consultório, ao longo de mais de duas décadas sendo terapeuta, escutando a dor e o encantamento de pessoas a quem acompanhei no processo de cura e de individuação. Constatei, seguidamente, que a saúde plena não se reduz a um estado de ausência de doenças: é uma decorrência natural de um fluxo livre de individuação, de realização do nosso potencial inato, de alinhamento e transparência com aquilo que somos É o que traduzo afirmando que as enfermidades são advertências oriundas da inteligência profunda do organismo, anunciando que nos desviamos de nossos caminhos. Todo sintoma é denúncia de desvio, de contradição; cartas que recebemos com importantes mensagens existenciais. Nascemos para evoluir e adoecemos quando nos deixamos estrangular no curso singular de realização vocacional. Neste sentido, o sintoma psicossomático é um sonho orgânico que precisa ser decifrado, como se fora um texto sagrado, na sua dimensão significativa. A autêntica cura jamais pode ser reduzida à pura e mecânica eliminação do sintoma, decorrendo, isto sim, de uma escuta atenta e delicada de sua mensagem vital.

Há uma dimensão educacional na abordagem holística em terapia. No seu sentido original, educação provém do latim educare, significando trazer para fora a sabedoria inerente ao indivíduo: atualizar o seu potencial vocacional. Aprender a fazer plena e inclusiva escuta e leitura da sintomatologia como denúncia de descaminho, é uma importante etapa no caminho do autoconhecimento e individuação.

No Antigo Egito, o abutre era considerado um pássaro sagrado que constava do Panteão de Rá. Se você está fazendo uma  travessia pelas areias abrasantes de um deserto, e avista um abutre voando no céu acima de sua cabeça, saiba que você se desviou do seu caminho e o agourento pássaro aguarda a sua refeição!… É hora, sem demora, de voltar-se para a bússola e o mapa para um processo de correção de rota. Da mesma forma, quando as asas negras da doença, do infortúnio e depressão circulam o céu da sua existência, a atitude sábia é a urgente e reflexiva busca de retomada do seu eixo original, do seu norte existencial, ou seja, da sua vocação.

Por outro lado, também necessitei de muitos anos na escuta terapêutica para constatar o lado luminoso desta mesma questão. Assim como o sofrimento pode nos indicar acerca de nosso desvio, é o deslumbramento que sinaliza o nosso acerto, quando estamos nos alinhando com o nosso propósito essencial. Escutar os momentos estrelados de bem-aventurança  é um complemento indispensável à escuta da dor.  Quando badalam todos os sinos da Catedral do Ser, quando tudo vibra em harmoniosa melodia, quando somos abençoados por uma imensa paz,  é quando estamos sendo tocados pelas asas brancas do anjo do deslumbramento, a sussurrar em nosso íntimo: Este é o teu caminho com coração! Não temas; vá por aí!

 Eis a pergunta fundamental, que todo educador, orientador e terapeuta deve fazer ao seu acompanhante: O que te faz arrepiar? É assim que, pouco a pouco, farejamos e desvelamos a promessa inerente ao ser de cada pessoa. Pesquisar o fio de continuidade que conecta todos os nossos deslumbramentos, da infância ao momento atual, é o mais eficaz método da tarefa pedagógica prioritária do desvelar vocacional.

É muito triste ouvir um pai ou professor dizer a um jovem: “Faça tal curso ou siga tal carreira pois é o que há de melhor no mercado atual”. Esta é uma ação  corruptora e desviante. Até onde posso compreender, há duas atitudes básicas frente ao trabalho. A primeira é a de quem trabalha para ganhar dinheiro. Esta é a atitude miserável e normótica, de quem dispersará o precioso dom  da existência vendendo-se por algo sem sentido; é  vida perdida. A segunda é a atitude nobre e saudável: a de quem ganha dinheiro realizando uma missão, uma vocação. Quando percorremos um Caminho com Coração, então o Mistério há de conspirar por nós, pois estamos fazendo a nossa parte. “Você tem medo? Olha esta grama, olha aquele pardal; o Pai cuida deles. Você vale mais do que um pardal. Por que o Universo não cuidaria de você?”, indaga a sabedoria Crística. Uma das artes da individuação consiste em evoluir de uma existência perdida e alienada para uma existência escolhida e ofertada.

através da vocação que está ao nosso alcance superar o modelo da especialização. Esta última limita e minimiza o raio de visão e ação. No modelo vocacional, o aprendiz é convidado a fincar as suas raízes no solo fecundo de seus talentos particulares, a fim de reunir a seiva para remeter o seu caule rumo ao céu. Assim, o desenvolvimento de uma competência específica, o aprofundamento numa determinada área do saber e fazer humano, não castrará a visão de altitude, que desvela um horizonte amplo de sentido e de orientação. Como diz o antigo preceito taoísta, o alto descansa no profundo. Não será o dharma ou vocação do ser humano, à moda do arco-íris de Noé, fazer a ponte de Aliança entre a terra e o céu?

 Elogio ao Jardineiro

 O jardineiro é a melhor metáfora para designar a excelência do educador e do terapeuta. O bom jardineiro prepara um solo fértil, com os nutrientes necessários – nem de mais, nem de menos -, extermina as pragas e poda, com o discernimento que cada planta requer, observando as estações e centrado na singularidade do organismo vegetal. Sobretudo, o bom jardineiro é o amante da planta. Jamais será tão tolo a ponto de querer doutriná-la com suas teorias e ideais, aceitando e admirando a beleza da biodiversidade. O bom jardineiro sabe que a planta só necessita de um solo fecundo, crescendo por si mesma, já que é dotada de um tropismo para ser o que é, buscando o que necessita no solo e direcionando-se para a luz do sol. O que seria de um jasmim se forçado a ser como uma rosa?

Aqui tocamos o coração da tragédia de um modelo educacional distorcido e esclerosado, a serviço da normose que, infelizmente, é ainda dominante: a criança é forçada a ser o que não é por meio do fórceps de um currículo estreito e rígido e do instrumento torturante da comparação. Comparar uma criança com outra ainda será considerado um crime, num futuro breve a mais saudável. Esta é a gênese da perversão e da corrupção. Para conseguir aprovação, o estudante é obrigado a jogar a sua diferença e originalidade na lata de lixo, vendendo-se por notas. Mais tarde, poderá se vender por outras notas… É desolador ter que reconhecer que, na horta de um horticultor qualquer, um pé de alface é muito melhor tratado do que nossas crianças estão sendo, neste simulacro de escola. O que pensaríamos de um horticultor que exigisse, de todas as suas diversas hortaliças, o mesmo desempenho, o mesmo resultado?

Cada aprendiz necessita ser respeitado na sua alteridade e estilo próprio de aprender a aprender. Numa escola saudável, o educador centra-se no aprendiz – e não num programa rígido, massificador e castrador do brilho e originalidade que emana de cada pessoa. Utopia!, esbravejarão alguns. Permito-me lembrar-lhes, então, que utopia não é o irrealizável; é tão somente o ainda não realizado, aquilo para o qual ainda não existe espaço.

É tempo de educar educadores. É tempo de ousar resgatar o espaço sagrado onde o aprendiz possa orientar o seu coração para aprender, sobretudo, a ser plenamente o que ele é. É tempo de conspirar por uma educação não-normótica, centrada na totalidade. É tempo de reconstruir o templo da inteireza. Concluo com uma fala antiga que aponta para a essência do que é educar:

            “Aos quinze anos orientei o meu coração para aprender.

             Aos trinta, plantei meus pés firmemente no chão.

             Aos quarenta, não mais sofria de perplexidade.

             Aos cinquenta, sabia quais eram os preceitos do céu.

             Aos sessenta, eu os ouvia com ouvido dócil.

             Aos setenta, eu podia seguir as indicações do meu próprio coração,

             pois o que eu desejava não mais excedia as fronteiras da Justiça.

CONFÚCIO (2.600 aC)

 

 Algumas outras pistas…

 Crema, Roberto

  • .Introdução à Visão Holística (Àgape, SP, 1989)
  • .Saúde e Plenitude – Um Caminho para o Ser (Summus,SP, 1995)
  • .Antigos e Novos Terapeutas – abordagem transdisciplinar em terapia (Vozes, Petrópolis, 2001)

Weil, Pierre; D’Ambrosio, Ubiratan; Crema, Roberto

  • .Rumo à Nova Transdisciplinaridade – Sistemas Abertos de Conhecimento (Summus, SP, 1993)
  • Brandão, D; Crema, R (Org.)
  • .Visão Holística em Psicologia e Educação (Summus, SP, 1991)
  • .O Novo Paradigma Holístico (Summus, SP, 1991)

 Pierre Weil

  • .A Arte de Viver em Paz (Ed. Gente, SP, 1993)
  • .Holística: Uma Nova Visão e Abordagem do Real (Palas Athena, SP, 1990)

D’Ambrosio, Ubiratan

  • .Transdisciplinaridade (Palas Athena, SP, 1997)
  • .A Era da Consciência (Fundação Peirópolis, SP, 1997)

COLEÇÃO UNIPAZ – COLÉGIO INTERNACIONAL DOS TERAPEUTAS:

  •  Leloup, Jean-Yves; Boff, Leonardo; Weil, Pierre; Crema, Roberto;
  • Lise M Lima – Org. O Espírito na Saúde (Vozes, Petrópolis, 1997)

Leloup, Jean-Yves

  • Cuidar do Ser (Vozes, Petrópolis, 1997)
  • Caminhos da Realização (Vozes, Petrópolis, 1997)
  • O Evangelho de Tomé (Vozes, Petrópolis, 1997)
  • O Corpo e seus Símbolos (Vozes, Petrópolis, no prelo)
  • Leloup, Jean-Yves; Boff, Leonardo
  • Terapeutas do Deserto (Vozes, Petrópolis, 1997)